APRECIAÇÃO DA OBRA VINTE E ZINCO, DE MIA COUTO



Rafael Nunes Ferreira
Núcleo de Estudos das Literaturas Lusófonas no Pampa – NELLP

O TEMPO É a revolução que ocorre em Lisboa. O espaço privilegiado é a convulsa África, mais especificadamente, a vila moçambicana de Moebase. Contudo, tempo e espaço se misturam na obra de Mia Couto, através das conturbadas relações entre africanos e portugueses — personagens que estão condicionadas à situação colonial secular em solo africano.

POR ESSA RAZÃO, em Vinte e zinco, Mia Couto parece privilegiar a polifonia de vozes que habita esse singular tempo-espaço, devidamente localizado, de forma central,¬ na história recente destes dois povos, criando, assim, uma espécie de caleidoscópio composto de pequenos fragmentos de um cotidiano deveras arruinado pelos horrores da guerra.

DIVIDIDO EM DOZE capítulos — situados temporalmente entre 19 e 30 de abril de 1974 —, Vinte e zinco se estabelece a partir de dois núcleos, distintos entre si, mas que se complementam em simetria, uma vez que é inegável o fato de que um depende da existência do outro.

DE UM LADO, apresenta a saga da família Castro, abalada por uma série de eventos decorrentes da Guerra Colonial, suas relações com o regime fascista português e com o povo local, bem como suas primeiras impressões e reações ao acontecimento de 25 de Abril.

DE OUTRO LADO, revela o dia-a-dia de africanos que vivem próximos a essa família portuguesa que se instalara em África durante a tentativa de manutenção dos territórios ultramarinos. Personagens estas constantemente subjugadas pela autoridade colonial e suas forças opressoras.

DESSA SIMBIOSE LITERÁRIA, extraímos a situação colonial por excelência, a qual consiste nas relações entre branco/negro, opressor/oprimido, colonizador/colonizado. Eis aqui o fio condutor que une os dois distintos núcleos na obra de Mia Couto.

DE FATO, como muitas das obras escritas no decorrer do século passado, Vinte e zinco caracteriza-se por uma indissociável relação entre o universo romanesco e a realidade extraliterária que lhe dá origem. Contudo, nessa re-apresentação de Mia Couto de um momento histórico, ratifica-se o caráter negativo de toda guerra. Isto porque mesmo havendo uma aparente relação de domínio português em solo africano, todas as personagens de Mia Couto sofrem em decorrência das relações caóticas estabelecidas durante a ocupação portuguesa na Guerra Colonial:

JOAQUIM DE CASTRO perde a vida, deixando apenas o fardo colonial à sua família. Lourenço de Castro, por sua vez, é torturado pelo fantasma do falecido pai — espécie de metonímia de um regime em decomposição —, Margarida sofre não só pela perda do marido, mas também ao ver o filho aos tormentos e a irmã que enlouquecerá em África. Por isso, pensa sempre em regressar a Portugal. Irene traz consigo a loucura, objeto de estudo da Psiquiatria, mas que pode ser lida como uma outra, aquela produzida pela guerra, embora esta não seja tratada diretamente na obra de Mia Couto.

DO LADO AFRICANO, a guerra é igualmente catastrófica, como é possível perceber através do trágico fim de tio Custódio, que morre após adoecer enquanto prestava serviços no quartel português; de Marcelino, o mecânico que só reencontrara a liberdade com o suicídio; dos presos arremessados ao mar por Joaquim de Castro, da visão de Andaré Tchuvisco, punido pelo poder colonial, enfim...

DESSE RETRATO QUE Mia Couto oferece, uma legenda parece nos saltar aos olhos:

Em África, tudo é pesadelo.

REFERÊNCIA:

COUTO, Mia. Vinte e zinco. Editorial Ndjira: Maputo, 1999.

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