O TRAUMA NARRADO NA OBRA OS CUS DE JUDAS:
A LITERATURA A SERVIÇO DO TESTEMUNHO


The narrated trauma in Os cus de Judas:
The literature serving the testimony


Rafael Nunes Ferreira -
Graduando do Curso de Letras – Português, Inglês e respectivas licenciaturas
Universidade Federal do Pampa – Unipampa/Campus Bagé


RESUMO

No presente artigo, pretendemos analisar a narrativa Os cus de Judas (1979), cuja temática refere-se à experiência-limite vivenciada pelo escritor António Lobo Antunes (1942) durante sua passagem por Angola, servindo ao exercito de Portugal, durante os enfrentamentos bélicos denominados guerras coloniais portuguesas, ocorridos entre os anos de 1961 a 1974 em três frentes: Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Lobo Antunes, que estivera cerca de vinte e sete meses em Angola, atuando como médico – experiência que acabaria por marcar densa e profundamente toda sua obra literária –, ao renunciar o estatuto do silêncio, criou um testemunho voraz acerca da sua experimentação da guerra em África. Para tanto, o autor utiliza-se de um narrador-personagem que, por meio de reminiscências puerícias e meditações sobre a condição em que se encontra, narra, de forma fragmentada, os anos de temor e angústia inumanos que carrega na memória. Para a análise da obra antuniana, buscamos suporte em autores como Márcio Seligmann-Silva, Beatriz Sarlo, Rui de Azevedo Teixeira, entre outros, cujos estudos abordam aspectos como memória, testemunho, trauma, tempo passado, guerra colonial, etc.

Palavras-chave: Experiência-limite, memória, testemunho, representação.



1. INTRODUÇÃO


Nas últimas décadas, os estudos literários vêm apontando que o testemunho é um elemento recorrente na produção artístico-literária, sobretudo, naquelas obras que tematizam eventos catastróficos. A respeito disso, Márcio Seligmann-Silva observa que “é evidente que qualquer fato histórico mais intenso... [...] permite – e exige! – o registro testemunhal tanto no sentido jurídico quanto no sentido de ‘sobrevivente’” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 09). Seligmann-Silva trata de aspectos que envolvem a chamada literatura de testemunho, uma literatura tecida pela narração de episódios traumáticos, como, por exemplo, o assassinato em massa praticado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

Todavia, a tese do presente exame não é determinar a que espécie de literatura a narrativa ora analisada pertence; mas, antes de tudo, dispor da coletânea crítico-analítica que, nos últimos anos, procura desenvolver um olhar reflexivo sobre questões relacionadas a narrativas cuja temática é a experiência de guerra. Em outras palavras, se há uma literatura que testemunha a memória do trauma – e que merece a devida atenção crítica e teórica –, qual é o lugar da literatura portuguesa pós-guerras coloniais, cujo valor literário e teor testemunhal são indiscutíveis? Destarte, memória, experiência, trauma e narração são conceitos-chave para os estudos literários acerca da presença do testemunho na literatura, principalmente, em se tratando da produção artística concebida no século XX: a “era das catástrofes”, nas palavras de Seligmann-Silva.

Para o pensamento freudiano (apud Seligmann-Silva, 2003, p.48), a experiência traumática não pode ser assimilada em sua totalidade no momento em que ocorre. Por isso, há um constante retorno, alucinatório, por parte da vítima à cena traumática. Ou seja, a história do trauma é a história de um abalo violento. Exemplos de eventos-limite podem se guerras, extermínios, acidentes, entre outros. Nesta esteira, podemos afirmar que o século XX revelou-se um tempo sui generis para o surgimento de narrativas escritas por sobreviventes, haja vista a vasta incidência de guerras, perseguições e genocídios que marcaram sua passagem, as quais revelam um conflito com o vivido, com o passado.

O tempo passado é sempre conflitante. Referem-se a ele, em concorrência, segundo afirma Beatriz Sarlo, “a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança...” (SARLO, 2007, p.09). Do ponto de vista daquele que sobrevive a um evento-limite, a historiografia desempenha um papel limitado e não dá conta da sua experiência, pois se história do trauma é a de um choque intenso, é, ainda, a do “desencontro com o real” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.49). Portanto, em decorrência da incapacidade de dar forma ao vivido, reiteramos, advém a constante repetição e volta à cena do trauma.

O ato de narrar a experiência traumática funde-se na presença real do enunciador na cena traumática. João Camillo Penna afirma que “o testemunho fala e narra o nosso encontro com o ‘Real’ do trauma” (PENNA, 2003, p.345). Em outras palavras, ao externar uma lembrança, o sujeito-narrador fala de algo particular que se quer legítimo pela presença ativa no acontecimento em questão. Nesse sentido, passado e presente são indissociáveis, visto que a memória é o elo que os une, atuando sobre um e outro. Para Sarlo,

...não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum. A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar (SARLO, 2007, p.24 e 25).

Como já foi dito, o século XX é o tempo das catástrofes por excelência. Inúmeros episódios compõem o inventário de eventos-limite ocorridos em tempos e espaços diversos. Durante as décadas de sessenta e setenta, as guerras coloniais portuguesas, que envolveram Portugal, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, constituem um período marcante na história bélica portuguesa e do século XX. De acordo com Rui de Azevedo Teixeira (1998), em 13 anos de guerra, foram mais de 1 milhão de soldados portugueses recrutados. Essa experiência de guerra, em Portugal, traduzira-se no surgimento de uma literatura pautada no resgate da memória e do testemunho da vivência traumática. Trata-se de uma literatura escrita por sobreviventes-testemunhas das guerras coloniais portuguesas, cujas narrativas relatam as experiências-limite vivenciadas durante a passagem pelos campos de batalha na África.


2. ÁFRICA, PORTUGAL E A GUERRA: UMA BREVE HISTÓRIA

Ao passo que as manifestações em prol da independência dos países africanos iam ganhando força, o Estado novo de António de Oliveira Salazar – no poder desde o golpe militar de 1926 –, procurava manter a mística imperial portuguesa, buscando, para tanto, reforçar as ligações entre Portugal e as colônias em África. (TEIXEIRA, 1998, p.31) Neste sentido, o regime salazarista, exercido de forma autoritária e ditatorial, e cuja base assentava-se sobre na tríplice nacionalismo-colonialismo-estatismo, passou a produziu um nível de opressão que aumentava “do centro para periferia, da metrópole para as colônias” (TEIXEIRA, 1998, p.32).

Prefaciando a guerra, as primeiras contestações africanas contra da condição colonial surgiram camufladamente por meio de reivindicações trabalhistas que foram “prontamente afogadas em sangue através de punições militares e paramilitares (TEIXEIRA, 1998, p.34). Embora a censura tenha calado os acontecimentos iniciais pró-independência e o regime de Salazar não tenha se preocupado com o iminente romper da guerrilha, a episódio ocorrido de 4 de fevereiro de 1961, em Luanda, onde um grupo de nacionalistas angolanos ataca duas cadeias e um quartel da polícia móvel portuguesa, com a finalidade de libertar ‘camaradas’ presos, simbolizou, de fato, o princípio do fim do império português na África e, historicamente, o inicio das guerras coloniais portuguesas.

Para o regime salazarista, esgotado internamente e isolado externamente, a opção pela guerra significou uma última tentativa de sobrevivência. Nas palavras de Carlos de Matos Gomes, “para existir um império era ainda necessário que a potência colonial dispusesse de força para impor o seu domínio” (GOMES, 2001, p.29). Por essa razão, no decorrer dos anos de guerra, tornou-se imprescindível o aumento progressivo da presença das tropas portuguesas mobilizadas em África, chegando ao seu ápice no início dos anos 70. Os custos para manutenção da guerra que se prolongava fugiram a todas as expectativas, comprometendo, gravemente, a economia de Portugal. Além disso, segundo Miriam Denise Kelm, “mortos e mutilados retornavam ao país, que os recebia em choque velado; nos lugares longínquos onde os combates aconteciam, as condições de vida dos aquartelados eram precaríssimas” (KELM, 2005, p.114).

Os dados trazidos na obra de Teixeira (1998) revelam o grau de envolvimento da nação lusitana durante os anos de uma guerra cuja busca da vitória se dava por meio de uma violência maciça, organizada, e que produziu grande sofrimento:

Com mais de 10.000 mortos, cerca de 20.000 deficientes físicos e ainda, possivelmente, 140.000 neuróticos de guerra, rara é a família portuguesa – salvo os ricos e os influentes do antigo regime e não pouca das mais conhecidas famílias da oposição – que não foi ferida pela Guerra Colonial. (TEIXEIRA, 1998, p.88)

Para o soldado português recrutado, essa experiência traumática é responsável por muitas conseqüências que se estendem até hoje, sobretudo, em se tratando de três aspectos que se relacionam: “o alcoolismo, a PTSD (Perturbação Pós-Stress Traumático) e o rompimento da comunicabilidade/integração, tanto no plano coletivo quanto no pessoal.” (KELM, 2005, p.139) Somados a isto, um sentimento de que a experiência vivenciada é algo incomunicável.

Após longos anos da experimentação da guerra, portanto, a derrota portuguesa representou o fim definitivo da odisséia imperial lusitana e o definitivo “regresso das caravelas” (TEIXEIRA, 1998, p.29). Para o soldado que embarcou para a guerra, a experiência em terras africanas representa um acontecimento ímpar em sua existência. Vivendo em um cenário de pesadelo e de beleza, ele prestou, em média, dois anos e meio de comissão, tendo que suportar “o isolamento e o sentimento de abandono, a tensão nervosa, o cansaço psicológico, a saturação, o mau abastecimento...” (TEIXEIRA, 1998, p.46)


3. MEMÓRIA E NARRAÇÃO N’OS CUS DE JUDAS

António Lobo Antunes (1942) iniciou sua carreira militar a 06 de janeiro de 1970. Já no ano seguinte, embarcou para Angola para viver aquilo que, segundo ele próprio afirma, representa a “experiência mais dolorosa” da sua vida. Em Angola, Lobo Antunes atuou como médico junto ao exército português. Após concluir sua passagem, o escritor retornou a Portugal em março de 1973, trazendo na bagagem uma experiência viria marcar profundamente sua vida e obra. Mesmo tendo iniciado suas atividades como médico psiquiatra, em 1976, Lobo Antunes começa a escrita do primeiro trabalho literário, Memória de elefante (1979), uma das obras que compõem a trilogia de guerra na qual o escritor passa em revista a experiência bélica em África.

Os cus de Judas é a narrativa mais reconhecida dentre as três que compõem a trilogia de guerra. Na obra, um narrador-personsagem rememora os vinte e sete meses que passou em Angola durante as guerras coloniais, atuando como médico do exército português. A rememoração desse sujeito, cujo nome não é revelado, ocorre em uma noite “sem fim, espessa, densa, desesperante, desprovida de refúgios e saídas, um labirinto de angústias...” (ANTUNES, 2004, p.134), na qual ele – tomado pelo álcool – vai narrando lembranças entrecortadas por resquícios da memória da infância e de Portugal, e pelo exame da condição atual à qual se encontra. Essa narração, vale lembrar, é destinada a uma interlocutora que não se manifesta em momento algum enquanto o narrador, que é, ao mesmo tempo, narrador e protagonista, procura fazer um relato que se aproxime ao máximo da experiência vivida por ele durante a guerra.

Walter Benjamin (apud Sarlo, 2007, p.25), em face aos escombros da Primeira Guerra Mundial, observou a falência do relato devido ao esgotamento da experiência que lhe dava origem. Para ele, o choque traumático teria acabado com a experiência transmissível, uma vez que os soldados voltavam mudos da guerra. Esse trauma, de fato, seria demasiado forte para “o “minúsculo, frágil corpo humano” (BENJAMIN, 1980, p.57). Na esteira do pensamento freudiano, Jeanne Marie Gagnebin afirma que o choque traumático “fere, separa, corta ao sujeito o acesso simbólico, em particular à linguagem” (GABNEBIN, 2006, p.51). Nesse aspecto, nota-se uma subtração da linguagem, isto é, sua despotencialização em face ao vivido, presente como um dos elementos mais angustiantes da rememoração:

Nunca as palavras me pareceram tão supérfluas como nesse tempo de cinza, desprovidas do sentido que me habituara a dar-lhes, privadas de peso, de timbre, de significado, de cor, à medida que trabalhava o coto descascado de um membro ou reintroduzia numa barriga os intestinos que sobravam, nunca os protestos me surgiram tão vãos... (ANTUNES, 2007, p.45 e 46).

Por outro lado, mesmo perante um real que não pode ser totalmente traduzido para o campo do simbólico – pois existe aqui uma lacuna entre a linguagem e o real –, há um imperativo que leva o sujeito a testemunhar contra a barbárie. Ao referir-se à obra É isto um homem?, de Primo Levi, cuja narração trata da sua experiência nos campos de concentração, Sarlo afirma o seguinte: “Os que não foram assassinados não podem falar plenamente do campo de concentração; falam então porque outros morreram, e em seu lugar” (SARLO, 2007, p.34). Ora, as verdadeiras testemunhas estão ausentes: pois são os mortos. Por isso, os sobreviventes testemunham no lugar delas:

Eu estava farto da guerra, Sofia, farto da obstinada maldade da guerra e de escutar, na cama, os protestos dos camaradas assassinados que me perseguiam no meu sono, pedindo-me que os não deixasse apodrecer emparedados nos seus caixões de chumbo, inquietantes e frios como os perfis das oliveiras... [...] se erguerão no interior de mim nos seus caixões de chumbo, envolto em ligaduras sangrentas que esvoaçam, exigindo-me, nos resignados lamentos dos mortos, o que por medo lhes não dei: o grito de revolta que esperavam de mim e a insubmissão contra os senhores da guerra de Lisboa... (ANTUNES, 2007, p.148 e 164)

A súplica dos mortos para que não os deixem apodrecer é esse imperativo. É, sobretudo, aceitar as “tristes palavras apodrecidas que os mortos legam aos vivos num borbulhar de sílabas informes” (ANTUNES, 2007, p. 160). Todavia, para não condená-los a cair no esquecimento é necessário uma volta a cena da barbárie; é preciso enlutar os que lá permaneceram, silenciosos. Uma tarefa agônica que envolve o constante regresso ao cenário do trauma, pois “a narração da experiência está unida ao corpo e à voz” (Sarlo, 2007, p.24):

Outro vodka? É verdade que não acabei o meu mas neste passo da minha narrativa perturbo-me invariavelmente, que quer, foi há seis anos e perturbo-me ainda: descíamos do Luso para as Terras do Fim do Mundo, em coluna, por picadas de areia, Lucusse, Luanguinga, as companhias independentes que protegiam a construção da estrada, o deserto uniforme e feio do Leste, quimbos cercados de arame farpado em torno dos pré-fabricados dos quartéis, o silêncio do cemitério dos refeitórios, casernas de zinco a apodrecer devagar, descíamos para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilómetros de Luanda, Janeiro acabava, chovia, e íamos morrer, ao lado do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia. (ANTUNES, 2004, p.36)

Simultaneamente há, por parte do sobrevivente, uma angústia em se livrar do terrível fardo da memória, pois como afirma Aharon Appelfeld, “o testemunho do sobrevivente é, antes de mais nada, a busca de um alívio” (APPELFELD, 1988, p.84). Esse sujeito que sobrevive, por sua vez, está preso a um local onde convergem o passado e o presente, o que resulta em uma inadaptação, visto que a reconstrução de um e de outro é sempre problemática. De certo, esse local de constante desconforto é o próprio presente, pois como afirma Sarlo “o tempo próprio da lembrança é o presente: isto é, o único tempo apropriado para lembrar e, também, o tempo que a lembrança se apodera, tornando-o próprio” (Sarlo, 2007, p.10). Ou seja, não é a experiência vivida que atormenta; mas, de fato, a lembrança traumática – dos mortos! – que se apodera fixamente do presente:

Era tudo mentira e acordei, e todavia, entende, em noites como esta, em que o álcool me acentua o abandono e a solidão e me acho no fundo de um poço interior demasiado alto, demasiado estreito, demasiado liso, surge dentro de mim, tão nítida como há oito anos, a lembrança da covardia e do comodismo que cuidava afogados para sempre numa qualquer gaveta perdida da memória, e uma espécie de, como exprimir-me?, remorso, leva-me a acocorar-me num ângulo do meu quarto como um bicho acossado, branco de vergonha e de pavor, aguardando, de joelhos na boca, a manhã que não chega. (ANTUNES, 2004, p.133)


4. À GUISA DE CONCLUSÃO


De certo, é patente a relação intrínseca da obra Os cus de Judas com a experiência-limite vivida pelo escritor Lobo Antunes, entre 1971 e 1973 – período em que atuou como médico no exército de Portugal em Angola –, do mesmo modo que é inegável o fato de que as guerras coloniais tenham sido um evento assaz violento para os soldados portugueses mandados para o combate, aspecto que, como sabemos, vem sendo exposto em congressos, encontros, pesquisas, arquivos oficiais, dissertações, teses, publicações variadas, etc. Portanto, iluminados pelo pensamento de Seligmann-Silva, o qual nos diz que todo evento histórico intenso permite e exige um testemunho, devemos olhar atentamente para as narrativas portuguesas pós-guerras coloniais, visto que representam um acervo de valor literário e testemunhal caríssimo aos estudos que procuram estabelecer uma nova abordagem da produção artística e literária, em especial, daquela produzida no último século.

Vale lembrar que a atitude empreendida no exame da obra antuniana vem ao encontro das tentativas de se evitar concepções redutoras, as quais excluem exemplos singulares que, como observa Anselmo Peres Alós, são recusados “justamente pelas singularidades, particularidades e rupturas estabelecidas em relação à definição padrão” (ALÓS, 2008, p.01). Ora, não podemos negar que a obra de Lobo Antunes carrega em seu cerne a experiência individual à qual o escritor foi submetido. Experiência que é revelada – na medida em que o real consegue ser representado pelo simbólico –, por um narrador autodiegético, que encarna ao mesmo tempo narrador e protagonista, e que, ademais, pode ser considerado um alter ego do escritor Lobo Antunes, ou seja, autor e narrador: ambos ex-combatentes em Angola que voltam da guerra para retomar as atividades de psiquiatria.

Portanto, pensar a literatura portuguesa produzida após o final da guerra é, sob esse viés, pensar os limites e as possibilidades de representação – ficcional ou não –, acerca do episódio mais expressivo ocorrido na sociedade portuguesa do século XX; e isso significa observá-lo em seus diversos níveis, incluindo históricos, psicológicos, sociais, culturais, etc., e em suas relações. Se a literatura de testemunho nasce, sobretudo, no século das perseguições, genocídios, brutalidades, entre outros, os textos críticos podem – e devem – ser disponibilizados para os estudos das diversas literaturas onde o teor testemunhal se manifesta de forma lúcida, como é o caso da literatura portuguesa escrita por ex-combatentes das guerras coloniais; significando, ainda, pensá-la, indiferente às suas singularidades que a exclui de categorizações mais radicais, mas, antes de tudo, pensá-la no que tange aos estudos acerca da literatura e do testemunho, e suas implicações para os estudos literários.


5. REFERÊNCIAS


APPELFELD, Aharon. After the Holocaust. In: LANG, B. (org.). Writing and the Holocaust. Nova Iorque, Londres: Holmes & Meier, 1988.
BENJAMIN, Walter; HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W.; HABERMAS, Jürgen; [trad.] GRÜNNEWALD, José Lino... [et al.]. Obras escolhidas. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
GOMES, Carlos de Matos. Forças Armadas e o regime, o ovo e a serpente. In: I Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial. Universidade de Lisboa, 2000, Lisboa. Livro de Actas. TEIXEIRA, Rui de Azevedo (Org.) A guerra colonial: realidade e ficção. Lisboa: Notícias, 2001, p.29-36.
KELM, Miriam Denise. Quando a mulher se inscreve em meio à guerra (contributos da voz autoral feminina na representação ficcional das guerras coloniais portuguesas), tese de doutorado PUC-RS, 2005.
PENNA, João Camillo. Este corpo, esta dor, esta fome: notas sobre o testemunho hispanoamericano. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio, (org.). História, memória, literatura. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. (org.) História, memória e literatura – o testemunho na era das catástrofes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
TEIXEIRA, Rui de Azevedo. A guerra colonial e o romance português. Agonia e catarse. Lisboa: Notícias, 1998.

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