A VIAGEM INICIÁTICA DE MIGUEL DE CERVANTES

Rafael Nunes Ferreira
Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA

O autor do mito Dom Quixote de la Mancha, Miguel de Cervantes Saavedra, nasceu em Alcalá de Henares, perto de Madri, na Espanha (embora várias outras cidades tenham disputado seu berço), provavelmente na data de 29 de setembro de 1547, já que, à época, não era de costume manter-se registros das datas de nascimento. De fato, o que se sabe é que Miguel de Cervantes foi batizado em 09 de outubro de 1547, na Igreja de Santa Maria Maior, na cidade de Alcalá de Henares, conforme consta no primeiro livra de registros da paróquia, felizmente conservado. Filho do modesto barbeiro Rodrigo de Cervantes — que, a exemplo de seus colegas barbeiros, personagens da obra Dom Quixote, vivia de aplicar sangrias, fazer pequenas cirurgias e atuar com dentista —, e de Leonor de Cortinas. Miguel de Cervantes foi o quarto dos setes filhos que o casal teve. Assim, nascido em família sem recursos da aristocracia cavaleiresca, viveu uma vida prenhe de melancólicos sonhos frustrados.

Outro aspecto importante é que Miguel de Cervantes era gago, como ele próprio esclarece no prólogo das Novelas exemplares, obra de 1613:

Enfim, já que o tempo se foi e eu passei em branca nuvem, serei obrigado a valer-me de minha lábia, que, embora gaguejante de natureza, não o será para falar certas verdades que, embora ditas por metáforas, possam ser entendidas claramente. (SAAVEDRA, 1613)

A pretensão por aventuras provoca inúmeros dramas em sua vida. De tal modo que, aos 22 anos de idade, o escritor viaja à Itália, onde acaba trabalhando como camareiro no séqüito do Cardeal Acquaviva. Entretanto, devido à sua pobreza e insatisfeito com a função, Miguel de Cervantes alista-se como soldado raso no exército espanhol, em 1570, para lutar contra os turcos que colocavam em risco a Europa Ocidental. O soldado Miguel de Cervantes sofreu todos os dissabores e privações das campanhas.

Mas o fato mais marcante de sua vida militar ocorreu, certamente, quando de sua participação a bordo da galera “Marquesa” na investida contra os turcos, no famoso episódio da batalha naval de Lepanto, em 07 de outubro de 1971, na costa da Grécia, onde acabou gravemente ferido, no peito e na mão esquerda, ficando esta completamente inutilizada. Devido a este acidente, Miguel de Cervantes ganhou o apelido de el manco de Lepanto. Este foi seu maior momento de glória. Em várias oportunidades, ele mesmo nos conta com grande orgulho deste episódio em sua vida. No prólogo do segundo livro de Dom Quixote, por exemplo, o autor faz referência ao fato:

Se as minhas feridas não resplandecem aos olhos de quem as mira, são pelo menos estimadas na consideração dos que sabem onde foram ganhas, uma vez que o soldado melhor parece morto na batalha do que livre na fuga, e tanto tenho como certo que, se agora me propusessem e facilitassem um impossível recomeçar, antes quisera haver-me naquela prodigiosa ação de guerra, do que, são de minhas feridas sem dela nunca haver participado. (SAAVEDRA, 1615, p.12)

Miguel de Cervantes participou em outras expedições militares; cansado da vida de soldado, porém, e ansioso por rever os parentes e solicitar alguma recompensa pelos serviços prestados à nação, em 1974, decide retornar à Espanha. No entanto, durante seu regresso de Nápoles à terra natal, seu navio, a galera El Sol, vai a pique seis dias após ter deixado o porto de Nápoles, e Miguel de Cervantes acaba sendo capturado, juntamente com seu irmão, e passa cinco anos vivendo como prisioneiro, nas mãos de piratas argelinos, permanecendo em Argel até 1580. Como Miguel de Cervantes possuía importantes cartas de recomendação, pensando que se tratasse de alguma pessoa de muita importância, os piratas elevaram muito o preço de seu resgate, complicando, assim, a sua situação.

Mas Miguel de Cervantes acabou sendo solto após pagamento de seu resgate – 500 escudos de ouro –, depois de várias tentativas de fuga malogradas. Sua família e uma missão católica de Frei João Gil, da Redenção de Cativos, foi quem pagou seu resgate. A história do cativo Rui Peres de Viedma, no primeiro livro de Dom Quixote, é bem ilustrativa da experiência vivida por Miguel de Cervantes, enquanto estava no cativeiro. O autor, no trecho abaixo, provavelmente, refere-se a si mesmo, como podemos observar:

Só se saiu bem com ele um soldado espanhol chamado Fulano de tal Saavedra, o qual, apesar de ter feito coisas que ficarão na memória daquela gente por muitos anos [...] E se não fosse pela falta de tempo, eu agora contaria alguma coisa do que fez esse soldado, e que serviria para entreter-vos e maravilhar-vos muito mais do que o relato dessa minha história. (SAAVEDRA, 1997, p. 376).

De volta à casa paterna, encontra sua família na miséria e abarrotada de dívidas. Tampouco, Miguel de Cervantes consegue algum emprego digno; além disso, ao regressar à Espanha, o combatente aprisionado acaba nem recebendo medalhas nem sendo promovido, tendo que, para subsistir, engajar-se em 1581 nas tropas de Filipe II, continuando, assim, na vida militar até 1584. Termina aqui sua época de grandes sonhos heróicos. Sua vida, doravante, apresenta-se-lhe com face mais ingrata, repleta de desgostos e misérias. Devido a esses momentos de cativeiro, aprisionamento, é que Miguel de Cervantes tanto estima a liberdade em Dom Quixote, como percebemos no diálogo do Fidalgo e Sancho Pança:

A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que aos homens deram os céus. Com ela, não se podem igualar os tesouros que a terra guarda, ou que o mar encobre. Pela liberdade, assim como pela honra, pode-se – e deve-se – arriscar a vida. Por outro lado, o cativeiro é o maior mal que pode sobrevir aos homens.

REFERÊNCIAS:

HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. [Trad.] AMADO, Eugênio. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha – Volume I. Belo Horizonte-Rio de Janeiro, Itatiaia, 1997.
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. [Trad.] AMADO, Eugênio. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha – Volume II. Belo Horizonte-Rio de Janeiro, Itatiaia, 1997.
RAMOS, Mário Amora. Dom Quixote – Quatro Séculos de Modernidade. São Paulo, Novo Século Editora, 2005.
SHAKESPEARE, Willian. [Trad.] FERNANDES, Millôr. Hamlet. Porto Alegre, L&PM, 2006.
BETTO, frei. A Razão Crítica de Cervantes através da Loucura de Dom Quixote. Artigo publicado no sítio www.voltairenet.org, São Paulo, 2005.
Sítio http://www.wikipedia.org/.
ANTUNES, Álvaro de Araújo. Artificiosos e Verdadeiros: Leitores e Práticas de Leitura em Dom Quixote de la Mancha.
PITOL, Celso Augusto Uequed. Dez Maneiras de Falar sobre Dom Quixote. Ensaio publicado no sítio www.digestivocultural.com. Canoas, 2005.
Encyclopaedia Britannica – Desktop Encyclopedia
MOREIRA, Maria Salete Toledo de Uzeda. A Recepção de Dom Quixote no Brasil. Ensaio apresentado no Congresso Brasileiro de Hispanistas. 2002.
Revista Entreclássicos. Edição 3: Miguel de Cervantes. Duetto. 2006.

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