CERVANTES E SHAKESPEARE: VOZES SOCIAIS
MARCADAS PELO TEMPO


Rafael Nunes Ferreira
Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA

“Num lugar da Mancha, cujo nome não quero lembrar, vivia, não faz muito tempo, um fidalgo, dos de lança guardada em cabide, adarga antiga, rocim frouxo, e galgo corredor” (SAAVEDRA, 1605, p. 27). Com estas palavras, dá-se início às aventuras e façanhas do fidalgo Alonso Quijano e seu fido escudeiro Sancho Pança. Como se sabe, Dom Quixote é uma das obras mais traduzidas e lidas no mundo inteiro, percorrendo, ao longo de mais de quatrocentos anos, as mais diversas culturas. Uma obra que, sem sombra de dúvidas, é composta por múltiplos elementos que a singularizam dentro da literatura universal.

Em Dom Quixote, o escritor espanhol Miguel de Cervantes, de maneira brilhante, revela-nos um retrato minudenciado da Espanha de sua época, pois que, além de apreciarmos as atrapalhadas e comoventes peripécias do fidalgo “endoidecido”, conseguimos navegar à nau do tempo e contemplar toda essa peculiar atmosfera histórica. Ler Dom Quixote, destarte, proporciona-nos uma visão da sociedade espanhola do século XVI que vivencia intensas transformações sociais, culturais, políticas e econômicas decorrentes do declínio do feudalismo e a ascensão do capitalismo como sistema econômico-social.

Nesse sentido, assim como Shakespeare na Inglaterra, percebemos em Miguel de Cervantes as mesmas inquietações de seu tempo. No ano da publicação de Dom Quixote, em 1605, Shakespeare escrevia o Rei Lear, no qual manifestava as mesmas aflições com relação àqueles tempos modernos. Em uma passagem do conde Gloucester, personagem de Rei Lear que amparava um filho interesseiro em detrimento de outro que era fiel, podemos visualizar, nitidamente, a agitação daquela época, que pode ser bem transportada para os dias atuais:

Love cools, friendship falls off, brothers divide: in the cities, mutinies; in countries, discord; in palaces, treason; and the bond cracked twixt son and father. […] We have seen the best of our time; machinations, hollowness, treachery, and all ruinous disorders follow up disquietly to our graves. [...] (SHAKESPEARE, 1605)

O amor esfria, a amizade se rompe, os irmãos se dividem: nas cidades, motins, nos campos, discórdia; nos palácios, traição; e os laços entre pai e filho rompidos. [...] Já vimos os melhores anos do nosso tempo; maquinações, futilidade, traição e todas as desordens ruinosas nos acompanham inquietantemente até nossos túmulos. [...]


Dois mestres da literatura universal, contemporâneos, vivendo em sociedades distintas, mas capazes de perceber as grandes transformações e desenvolvimentos portadores de novos problemas, cujos efeitos até hoje perduram. Quiçá o mais grave deles, o desenvolvimento bélico que despertou em Miguel de Cervantes um admirável discurso contra a “espantosa fúria destes endemoninhados instrumentos da artilharia”. Enfim...

REFERÊNCIAS:

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro, Alhambra, 1987.
WATT, Ian. [trad.] PONTES, Mário. Mitos do Individualismo Moderno. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997.
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. [Trad.] AMADO, Eugênio. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha – Volume I. Belo Horizonte-Rio de Janeiro, Itatiaia, 1997.
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. [Trad.] AMADO, Eugênio. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha – Volume II. Belo Horizonte-Rio de Janeiro, Itatiaia, 1997.
RAMOS, Mário Amora. Dom Quixote – Quatro Séculos de Modernidade. São Paulo, Novo Século Editora, 2005.
PINTO, Manuel da Costa. DVD: Mitos Literários do Ocidente e a Modernidade. Cultura-Espaço Cultural CPFL.
BETTO, frei. A Razão Crítica de Cervantes através da Loucura de Dom Quixote. Artigo publicado no sítio www.voltairenet.org, São Paulo, 2005.
Sítio http://www.wikipedia.org/.
ANTUNES, Álvaro de Araújo. Artificiosos e Verdadeiros: Leitores e Práticas de Leitura em Dom Quixote de la Mancha.
VALVERDE, Maria de la Concepctión Piñero. Notas sobre a Loucura Quixotesca em Quincas Borba.
PITOL, Celso Augusto Uequed. Dez Maneiras de Falar sobre Dom Quixote. Ensaio publicado no sítio www.digestivocultural.com. Canoas, 2005.
Encyclopaedia Britannica – Desktop Encyclopedia
SCLIAR, Moacyr. O Caso Dom Quixote. Revista Mente e Cérebro. Edição 147, abril/2005.
Revista Entreclássicos. Edição 3: Miguel de Cervantes. Duetto. 2006.

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