A METAMORFOSE DE KAFKA: CONFLITOS
TRADUZIDOS EM IMAGENS


Rafael Nunes Ferreira
Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA

Ao narrar a inusitada situação em que se encontra o caixeiro-viajante Gregor Samsa, que, em certa manhã, ao despertar de sonhos intranqüilos, vê-se transformado em um inseto monstruoso, parece-me que Kafka traz à luz duas questões às quais pretendo projetá-las daqui em diante: Qual o valor do indivíduo em uma sociedade totalmente legislada por valores capitalistas e como se dão as relações entre indivíduos nessa sociedade?

Ora, trata-se da história de um caixeiro-viajante – o qual mantém o sustento da casa, inclusive, tomando para si dívidas após a “desgraça comercial” dos negócios do pai – que, mesmo em condições avessas, isto é, transformado num inseto grotesco, ainda assim terá de sofrer com as clausuras de uma sociedade moderna voltada para a operosidade e para o consumismo. Vejamos o seguinte:

Gregor Samsa mal abre os olhos e depara-se com um estado inexplicável. A metamorfose. “O que terá acontecido comigo?”, questiona-se, inicialmente. No entanto, em seguida, a ponderação: “Ah, meu Deus! – pensou. – Que profissão cansativa escolhi. Entra dia, sai dia – viajando.” (pág. 08). Parece relevante aqui acentuar que, embora o jovem caixeiro-viajante encontre-se numa situação obscuramente incomoda, um de seus primeiros pensamentos é o da profissão que lhe é desagradável, mas a qual não pode abrir mão, “por causa dos meus pais” (pág. 09). Como vemos, Gregor está fadado a ter de aceitar tal situação.

Em seguida, o personagem kafkaniano expõe uma outra realidade bastante pertinente para nossa análise que, via de regra, é vivenciada pelo trabalhador “comum”, e que lhe é bastante pesaroso:“Acordar cedo assim deixa a pessoa completamente embotada – pensou. – O ser humano precisa ter o seu sono. [...] Por enquanto, porém, tenho de me levantar, pois meu trem parte às cinco” (pág. 09). Ora, quem pode negar essa característica presente no cotidiano de grande parte de trabalhadores comuns, principalmente a partir do século XIX, com a intensificação do sistema capitalista sobrepujando nossas vidas.

Ademais, para corroborar minha apreciação dessa metamorfose kafkaniana, no que diz respeito ao questionamento das relações – e esvaziamento dessas relações – entre homens, evoco a figura “atroz” do chefe de Gregor, que “fala de cima para baixo com o funcionário”. De fato, para Gregor, a figura do chefe trata-se da de um homem frio e desprovido de qualquer sentimento humano aos seus semelhantes. Um verdadeiro burocrata impiedoso que jamais aceitaria uma ausência inexplicada ao trabalho “pois deixa enganar facilmente seu julgamento em prejuízo do funcionário”.

É mister também ressaltar aqui a relação “econômico-sentimental” de Gregor com sua família. De fato, sabemos que é Gregor quem proporciona à família uma vida tranqüila num apartamento bonito. E que se orgulha muito disso. “Tanto Gregor como a família acostumaram-se a isso: aceitava-se com gratidão o dinheiro, ele o entregava com prazer...” (pág. 41 e 42) Para seus pais, de fato havia a “convicção” de que o filho estava seguro no emprego de caixeiro-viajante para o resto da vida, e isso lhes causava certo conforto e acomodação. No entanto, a partir do episódio da metamorfose e do surgimento de uma nova realidade, Gregor irá se questionar: “...como seria agora, se todo o sossego, todo o bem-estar, toda a satisfação chegasse assustadoramente ao fim?” (pág. 34) De fato, o dia-a-dia da família, eminentemente, haveria de se alterar.

De tal modo, dada a situação de Gregor, os demais membros da família têm que se reorganizar e são convocados a sair da situação cômoda em que permaneciam desde que o caixeiro-viajante assumira as despesas de toda a família. E a relação de Gregor com a família que nunca resultou nenhum “calor especial” haveria de se tornar extremamente pesarosa para todos.

De fato, não procurando estender-me mais, quero aqui dissertar a favor da análise d’A Metamorfose, sob a ótica da crítica da sociedade capitalista do século XX, a qual valoriza a produtividade, a troca de bens e serviços, em detrimento das relações interpessoais que se tornam, gradativamente, cada vez menos afetivas. É fato que Kafka consegue em sua obra bem nos mostrar essa realidade, seja na relação de Gregor e seus superiores, seja na relação dele com os familiares, após a metamorfose (dupla), uma vez que Gregor passa de mantenedor da família e, peça capital da engrenagem dessa célula, a um ser ordinário e sem utilidade.

REFERÊNCIAS:

ANDERS, Güenter. Kafka: Pró e Contra – Os Autos do Processo. Trad., posf. e notas: Modesto Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
KAFKA, Franz. Trad. Modesto Carone. A Metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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