ADORNO: DISCURSO SOBRE LÍRICA E SOCIEDADE


Rafael Nunes Ferreira
Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA


Em sua obra Discurso sobre Lírica e Sociedade, Adorno interroga: “Perguntarão vocês, pode falar de lírica e sociedade um homem que não seja tocado pelas musas?” É a partir dessa questão que Adorno discorre acerca da relação lírica/sociedade, afirmando que a relação com o social não nos deve afastar de obra de arte, mas, de forma contrária, inserir-nos mais profundamente nela, uma vez que o conteúdo de um poema não é apenas a expressão de emoções e experiências individuais. Contudo, estas não chegam nunca a ser artísticas a menos que consigam participação do geral por meio, precisamente, da especificação da essência de sua forma estética. Não se trata de que, o que expressa o poema lírico, tenha de ser o diretamente vivido por todos.

Para Adorno, o que ocorre é que a inversão no individual eleva o poema lírico ao geral através do processo de tornar manifesto algo não deformado, não apreendido, ainda não associado, antecipando, assim, espiritualmente, algo de uma situação na qual nenhuma generalização má, que é profundíssima particularidade, se vincula ao outro, ao humano. O poema lírico espera o geral da individuação sem reservas. Mas tal generalidade do conteúdo lírico é essencialmente social. Só entende o que diz o poema aquele que percebe na solidão do mesmo a voz da humanidade. Para Adorno, a idéia da interpretação social da lírica deve apontar como aparece na obra de arte o todo de uma sociedade como unidade em si contraditória; até que ponto fica a obra de arte condicionada à sociedade, e em que medida ela a ultrapassa.

Antecipando-se a desconfiança do leitor, Adorno questiona: “Vocês concebem a lírica como algo contraposto à sociedade, como algo plenamente individual (?).” Porém, como afirma ele, esta exigência que se faz à lírica, a exigência de que seja uma palavra virginal, é em sim mesma uma exigência social. Ela implica o protesto contra uma situação social que cada indivíduo experimenta como hostil, estranha, fria, opressiva, situação que se imprime negativamente na formação lírica. No protesto contra uma situação social, o poema exprime o sonho de um mundo no qual as coisas fossem de outro modo. A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, ao domínio das mercadorias sobre os homens.

Adorno entende que essa mesma concepção de essência social da lírica pode ser expressa de outro modo, ao dizer que seu conceito – sendo de certa forma e imediatamente nossa segunda natureza –, assume caráter plenamente moderno. Costuma-se dizer, afirma o autor, que um poema lírico perfeito tem que possuir totalidade ou universalidade, tem que comunicar o todo em sua limitação, o infinito em sua finitude. Mas se isso pretende ser algo mais que um lugar comum daquela estética que tem sempre à mão a panacéia da noção de simbólico, então temos a indicação de que, em todo poema lírico, a relação histórica do sujeito com a objetividade, do indivíduo com a sociedade, tem que ter encontrado seu fundamento por intermédio do espírito subjetivo, voltado para si mesmo. E esse fundamento será tanto mais perfeito quanto menos o poema torne temático a relação entre lírica e sociedade, quanto mais involuntariamente cristalize por si mesmo esta relação na formação lírica.

Todavia, Adorno acautela: “Não se trata de deduzir a lírica da sociedade; seu conteúdo social é precisamente o espontâneo, o que não é conseqüência de relações já existentes.” Além disso, se é possível considerar o conteúdo lírico objetivo em virtude precisamente da própria subjetividade – e caso contrário não se poderia explicar o fundamento mais simples da possibilidade da lírica como gênero artístico, isto é, seu efeito sobre outros que não o poeta em monólogo –, então o retraimento da arte lírica sobre si mesmo, esse se assumir a si mesma, este seu afastamento da superfície social, tudo isso deve estar socialmente motivado, sem o concurso do próprio autor. O meio para tal é a linguagem. Adorno afirma que a língua própria é algo duplo. Mediante suas configurações, conforma-se totalmente às emoções subjetivas, mais um pouco, e até poder-se-ia pensar que a própria língua as engendra. Mas, apesar disto, a língua continua sendo a mediação de conceitos, aquilo que produz a inalienável relação com o geral e com a sociedade.

Para Adorno, o auto-esquecimento do sujeito que se entrega à língua como a algo objetivo e a imediatez e involuntariedade de sua expressão são o mesmo; assim a linguagem mediatiza intimamente a lírica e a sociedade. Por esta razão, a lírica se mostra profundamente social não quando imita a sociedade, não quando não comunica algo, mas, de fato, quando o sujeito que consegue a expressão adequada entra em harmonia com a própria linguagem, ali onde a linguagem aspira por si e de si. Quando o “eu” se abandona na linguagem e está de todo presente nela; de outro modo a linguagem, como um esotérico abracadabra, sucumbiria à coisificação de modo exatamente igual ao que ocorre no discurso comunicativo. Mas isto remete à relação real entre indivíduo e sociedade. Não só o indivíduo está em si socialmente mediatizado, não só seus conteúdos são sempre e ao mesmo tempo sociais, mas também, ao contrário, a sociedade somente se forma e vive pelos indivíduos de que é essência.

No poema lírico, segundo Adorno, e mediante a identificação com a linguagem, o sujeito nega tanto sua mera contradição monadológica para com a sociedade quanto seu mero funcionamento no seio da sociedade socializada. Mas, à medida que cresce o predomínio desta sociedade sobre o sujeito, vai-se tornando mais precisa a situação da lírica. Quando se aguçou ao máximo a contradição entre a linguagem poética e a linguagem comunicativa, toda a lírica converteu-se em um jogo do tudo ou nada, porque, através do retorno da linguagem a si mesma como linguagem artística, por seu esforço em busca de uma comunicação, está lírica se distancia ao mesmo tempo da objetividade do espírito, da língua viva e imita, através do artifício poético, uma língua viva que já não existe.

Adorno afirma que a formação lírica é sempre expressão subjetiva de um antagonismo social. Mas como o mundo objetivo que produz lírica é em si um mundo antagônico, o conceito da lírica não se esgota na expressão da subjetividade a que a linguagem confere objetividade. O sujeito lírico não só encara o todo, e tanto mais compulsoriamente quanto mais adequadamente se manifesta, como também a subjetividade poética deve a si mesma o seguinte privilégio. Além disso, para o autor, os elementos materiais, de que nenhuma formação lingüística, nem mesmo a “poésie purê” pode prescindir completamente, terão tanta necessidade de interpretação quanto os elementos formais. Deve-se enfatizar, especialmente, como ambos se interpenetram; e somente graças a esta interpenetração, o poema lírico exprime dentro de suas limitações o momento histórico. Adorno ressalta que não se trata da pessoa poeta, de sua psicologia, nem de seu chamado ponto de vista social, mas do poema, simplesmente como quadrante histórico-filosóficos.

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