A BUSCA PELO RESTABELECIMENTO DA ORDEM EM HAMLET:
CONFLITOS DA NATUREZA HUMANA



Rafael Nunes Ferreira
Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA


“Something is rotten in the state of Denmark” (ato I, cena IV, p.48). A célebre frase shakespeariana sintetiza o drama de um homem que tem o pai envenenado e vê a mãe casar-se com o assassino de seu pai, seu próprio tio. Hamlet, príncipe da Dinamarca, tem uma existência perturbada pela angústia de viver em meio à busca da justiça; tentando, desta forma, restituir uma ordem mínima que determina a vida e sua dialética. De fato, o fato de um dos soldados pronunciar tal afirmação ilustra perfeitamente a razão a qual leva Hamlet a empenhar-se intensamente em vingar seu pai, o antigo rei da Dinamarca. Porém, a busca pela reconciliação da ordem, a justiça a qual Hamlet tanto anseia, não se dará sem antes ser marcada por vários conflitos.

Com a suposta morte acidental do rei Hamlet, seu irmão Cláudio casa-se com Gertrudes, a rainha e mãe de Hamlet, o príncipe, para assim tornar-se rei da Dinamarca e governar soberanamente. No entanto, para o príncipe Hamlet, não é apenas a perda do pai que o atormenta, mas esse desdobramento que ocorre após a morte do rei, qual seja, o casamento de Cláudio e Gertrudes. Sua angústia transparece, fazendo com que Cláudio, percebendo-a, questione-o: “How is it that the clouds still hang on you?” (ato I, cena II, p.33). Contudo, é quando está sozinho que Hamlet faz então o seguinte comentário:

Oh, that this too too solid flesh, would melt, / Thaw, and resolve itself into a dew: / Or that the Everlasting had not fix’d / His canon ’gainst self-slaughter. O God, O God! / How weary, stale, flat and unprofitable / Seems to me all the uses of this world! / Fie on’t ! oh fie, fie, ‘tis an unweeded garden /That grows to seed: things rank, and gross in nature / Possess it merely. That it should come to this: / But two months dead: nay, not so much; not two. / So excellent a king, that was to this / Hyperion to a satyr: so loving to my mother, / That he might not beteem the winds of heaven (ato I, cena II, p.35)

Desta forma, compreendemos que os fatos para o príncipe dinamarquês soam desarmoniosamente, mesmo antes do aparecimento do fantasma de seu pai — este, que surge para revelar toda a ardilosa trama de Cláudio para roubar sua coroa e sua rainha, e exige de Hamlet que a ordem seja restabelecida: “O horrible, O horrible, most horrible; / if thou hast nature in thee bear it not; / Let not the royal bed of denmark be / A couch for luxury and dammed incest.” (ato I, cena V, p.50 e 51) Hamlet, já sem confiar mais em ninguém, então, decide fingir-se de louco para que Cláudio não perceba suas verdadeiras intenções. Observemos ainda que, tanto Cláudio quanto Gertrudes, estão cientes de que o matrimônio deles representa uma desobediência à ordem natural das coisas, qual seja, a ordem que diz que Hamlet deveria suceder ao trono após a morte do pai. Apreendemos esse fato, de forma nítida, quando Cláudio diz a Gertrudes que Polônio descobrira o motivo que levara Hamlet a enlouquecer, e ela então se antecipa, dizendo: “I doubt it is no other, but the main, / His father death, and our o’erhasty marriage” (ato II, cena II, p.61).

A consciência de Hamlet padece, não pela ótica ordinária de alguém que busca apenas vingar-se do assassino de seu pai, mas pelo fato de não suportar viver em um ambiente em desordem, caótico em relação aos preceitos sociais e políticos vigentes. Para Hamlet,

“…this goodly frame the earth, seems to me a sterile promontory; this most excellent canopy the air, look you, this brave o’er-hanging firmament, this majestical roof, fretted with golden fire: why, it appears no other thing to me, than a foul and pestilent congregation of vapours” (ato II, cena II, p.69).

De tal modo, o sentimento do príncipe dinamarquês é como um odor pestilento que impregna os ares da Dinamarca e mantém sua alma atormentada pelo conflito motivado pela desordem familiar e política que vive.

Observemos, contudo, que, em sua busca solitária pelo restabelecimento de uma ordem mínima, Hamlet passa a submeter-se a vários conflitos no transcorrer de sua trajetória. Um deles, bastante manifesto, é o rompimento com Ofélia, “ídolo de sua alma”, uma vez que Hamlet, para manter sua falsa demência, tem de negar seu amor por Ofélia, dizendo a ela: “you should not have believed me. For virtue, cannot so inoculate our old stock, but we shall relish of it. I loved you not. (ato III, cena I, p.83). Ofélia era “enfraquecida pelo amor” e por isso Hamlet não partilha com ela sua farsa, com receio que ela, em sua ingenuidade, possa o trair. Por isso, ele acaba rompendo com ela.

Já no ato III, assistimos à cena na qual alguns atores interpretam o assassinato de um rei – a pedido do príncipe Hamlet –, muito semelhante ao acontecido com seu pai. Essa representação provoca enorme desconforto em Cláudio, que assistia à peça, confirmando ainda mais as suspeitas do príncipe dinamarquês. Mais tarde, quando Gertrudes encontre-se com Hamlet no quarto, que ainda finge-se de louco, então ela o interroga: “Have you forgot me?”, ao que ele responde: “No by the Rood, not so: / You are the Queen, your husband’s brother’s wife, but would you were not so. You are mey mother. (ato III, cena IV, p.103) Mais uma vez, Hamlet evoca a situação-agente da desordem e do conflito em sua consciência.

A cena se desdobra e outra confusão surge no caminho de Hamlet. O príncipe discute com Gertrudes e mata Polônio que, escondido atrás de uma cortina, escutava a conversa entre os dois. O fantasma aparece novamente e Hamlet fala com ele; entretanto, Gertrudes não o vê, o que a leva dizer:

“This is the very coinage of your brain, / This bodiless creation ecstasy / Is very cunning in”, ao que o príncipe responde: "My pulse doth temperately keep time, /And makes as healthful music. Its is not madness / That I have uttered… [...] Confess yourself to Heaven, / Repent what’s past, avoid what is to come.” (ato III, cena IV, p. 107).

É, portanto, desta forma que assistimos à aflição do jovem Hamlet na sua busca pela reconstrução da ordem, desconexa em relação ao que seria natural que acontecesse. No entanto, percebemos que, nessa busca que nasce da consciência interior de Hamlet, muitos conflitos abrolham, tornando a trajetória de Hamlet áspera e cruel. Portanto, o término dessa história não podia ser de outra forma, qual seja, o encontro derradeiro com o assassino de seu pai.

Hamlet, depois de ter levado até as últimas conseqüências sua busca pela restauração da ordem, ou seja, depois de ter fingindo-se de louco; ter assassinado Polônio; ter visto Ofélia perder o juízo e suicidar-se após a renúncia de seu amor por ela; ter feito Gertrudes assumir sua própria culpa, chega ao momento decisivo de sua busca, quando duelará com Laertes na presença do rei Cláudio. Ambos, Laertes e Cláudio, tramam a morte do príncipe; Hamlet, por sua vez, quer devolver a ordem ao reino com a morte de Cláudio, no momento apropriado: “Does it not, thinks’t thee, stand me now upon? / He that hath kill’d my King, and whor’d my mother” (ato V, cena II, p.145).

De tal modo se estabelece a narrativa que, no último ato, Hamlet, segurando a espada envenenada de Laertes, golpeia Cláudio e depois, à força, o faz beber a taça envenenada, atingindo, desta forma, seu objetivo: “Here thou incestuous, murderous, damned Dane, / Drink off this potion: is thy union here ? / Follow my mother” (ato V, cena II, p.153). No entanto, parece ser preciso que não só Cláudio morra, mas que todos os envolvidos acabem também perdendo a vida, como forma de restabelecer a ordem natural das coisas, uma vez que aqueles que a infringiram — também devam pagar por isso.

REFERÊNCIA:

SHAKESPEARE, William. Hamlet. 32.ed .Penguin Popular Classics: London, 2001.

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