O INTERCÂMBIO SEMIÓTICO ENTRE LITERATURA E CINEMA:
O CASO VIDAS SECAS: LIVRO E FILME


Rafael Nunes Ferreira
(Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA)


1 INTRODUÇÃO

A Literatura Comparada pressupõe a existência e a prática de uma atitude comparativa que busca observar os intercâmbios existentes dentro e fora do universo literário, e se constitui hoje em um instrumento fundamental no campo dos estudos da literatura, sobretudo, a partir dos anos 1990, quando se aproxima dos estudos culturais, passando a ampliar, desta forma, o âmbito de suas pesquisas. Para Buescu,

A Literatura Comparada parece poder surgir como espaço reflexivo privilegiado para a tomada de consciência do carácter histórico, teórico e cultural do fenómeno literário, quer insistindo em aproximações caracterizadas por fenómenos transtemporais e supranacionais quer acentuando uma dimensão especificamente cultural, visível, por exemplo, em áreas como os estudos de tradução ou os estudos intersemióticos (BUESCU, 1998, p.07).

Em síntese, a comparação, como afirma Carvalhal, “mesmo nos estudos comparados, é um meio, não um fim” (CARVALHAL, 2006, p.08). Nesse sentido, a Literatura Comparada é basilar para os estudos intersemióticos que buscam observar as relações de trocas entre narrativa literária e a narrativa fílmica, relações que compreendem desde os clássicos mais antigos até a narrativa e a poesia contemporânea, e abrange filmes que tem como tema e fonte de inspiração a linguagem escrita.

Nesse artigo, propomos uma análise comparatista da obra Vidas secas, de 1938, de Graciliano Ramos e da obra homônima de Nélson Pereira dos Santos, de 1963, buscando ressaltar a construção da narrativa em ambas, a partir de seus respectivos códigos semióticos, no sentido de observar as nuanças entre a narrativa literária e a narrativa fílmica, destacando suas peculiaridades no modo de narrar, tendo em vista que se trata de sistemas semióticos distintos.

2 NARRATIVIDADE, LITERATURA E CINEMA

A questão da capacidade de narrar, segundo Bello, é um dos principais pontos do debate atual acerca das relações entre literatura e cinema, operando como “elemento decisivo para o confronto entre duas formas de arte estritamente dependentes do fluxo temporal enquanto transformação em ação” (BELLO, 2005, p.03). A base da narrativa é o acontecimento, que se estabelece a partir de coordenadas espaço-temporais e estrutura-se em uma seqüência de acontecimentos com certa lógica. Tais características relativas aos textos narrativos permitem estabelecer o princípio da narratividade.

A narratividade é, segundo Reis, um “processo geral que é comum a todas as narrativas e não apenas exclusivo das literárias” (REIS, 2003, p.344), fazendo parte das atividades dos seres humanos nos mais diversos âmbitos artísticos e culturais. Para Alves,

A narratividade está numa relação directa com o receptor, pois é nele que se irá realizar o fenómeno estético da arte em geral, donde se pode considerar que a narratividade ocupa uma posição funcional na narrativa e é o processo pelo qual o receptor constrói activamente a história a partir da matéria narrativa fornecida pelo meio narrativo. A narratividade é um fenómeno da aprendizagem e difere de acordo com o horizonte cultural em que se insere, pois na sua funcionalidade, ela requer a suspensão do sentido de descrença, i.é, o receptor sabe que a narrativa não é real, mas, culturalmente, aprendeu a suprimir o desiderato de verdade, a fim de poder apreender a ficção como se da realidade se tratasse. Este fenómeno tem sido observado em todas as eras e não se limita aos textos narrativos literários, podemos verificá-lo no cinema, na banda desenhada e em todas as outras formas de expressão artística aos quais o conceito de narrativa pode ser aplicado.[1]

Sabemos que literatura e cinema são códigos semióticos distintos e, por isso, fazem uso de mecanismos distintos em seu processo de realização do ato de narrar. O instrumento principal do texto literário é a palavra, já para o cinema, é a imagem o elemento caro à concepção do texto fílmico. Nesse sentido, Meltz afirma que “o filme mostrará sempre melhor as coisas, mas o livro di-las­-á sempre melhor” (MELTZ, 1968 apud CEGARRA, 1994, p.90). Já Bello enfatiza que uma das principais diferenças entre o sistema literário e o sistema cinematográfico é que:

O texto fílmico, ao sugerir, devido à sua forte iconicidade, [irá produzir no espectador] a experiência presencial de um “estar lá” – em vez de um “ter estado lá” – [e também] potencia a contemporaneidade da experiência até ao seu ponto máximo. (BELLO, 2005, p.06).

Desta maneira, percebemos que tais subsídios, caros a cada código semiótico, são responsáveis pela forma de realização do ato de narrar e, ainda, pela forma de produção de efeitos de sentido diferentes nos leitores/espectadores.

3 VIDAS SECAS: O LIVRO E O FILME

Publicada em 1938, Vidas secas retrata o drama da seca e da opressão social vivido no sertão nordestino brasileiro, a partir da história de uma família de retirantes sertanejos que se vêem obrigados a deixar a terra onde vivem devido à terrível seca que os assola. Dentre os personagens principais da obra, estão Fabiano, Sinhá Vitória, o filho mais novo e o filho mais velho, pertencentes à família de retirantes, a cachorra Baleia, que os acompanha, além do dono fazenda e o soldado amarelo, representantes das respectivas instituições opressoras, latifundiária e policial. A obra está dividida em treze capítulos-quadros que se interligam, mas que, no entanto, possuem certa autonomia. A narrativa é realizada em terceira pessoa, com o predomínio do discurso livre indireto, onde o narrador, muitas vezes, penetra no íntimo da personagem, com o intuito de comunicar seus pensamentos e emoções.

Segundo Bosi, o roteiro de Graciliano Ramos é norteado “por um coerente sentimento de rejeição que adviria do contato do homem com a natureza ou com o próximo” (BOSI, 2006, p.402), o qual nos parece, evidentemente, atribuído em Vidas secas, ao personagem de Fabiano, “...um cabra, governado pelos brancos, quase um rês na fazenda alheia” (RAMOS, 2008, p.24), e sua família, uma vez que sua jornada origina-se de um problema espacial: a seca. Outra característica saliente na obra de Graciliano Ramos é a escassez comunicativa assinalada pela precariedade dos diálogos e pelo pouco domínio da linguagem das personagens. Nesse sentido, Vidas secas apresenta uma simbiose total entre forma e conteúdo, uma vez que, por um lado, observamos o ambiente seco do sertão nordestino e, por outro, a secura na linguagem de Fabiano e sua família.

Considerado um dos mais notáveis cineastas brasileiros e o primeiro cineasta a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, Nélson Pereira dos Santos buscou a máxima fidelidade em sua adaptação para o texto de Graciliano Ramos. Sua obra de 1963 realça a miséria, a opressão social e a incomunicabilidade em meio a um ambiente extremamente árido. Nesse aspecto, livro e filme assinalam a mesma problemática: a seca no Nordeste brasileiro e suas conseqüências mais devastadoras sobre o homem, causando sua animalização e a perda do sentido de sua própria existência.

4 CONSIDERANDO ALGUNS ASPECTOS DE VIDAS SECAS, O LIVRO E O FILME

Mudança é o título do primeiro capítulo o livro, que retrata o ambiente estéril do Nordeste árido e apresenta a família de retirantes em sua andança até a chegada na nova fazenda onde se alojam:

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco... [...] A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastavam-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça Fabiano sombrio cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. (RAMOS, 2008, p.09)


A cena prossegue com o menino mais velho caindo no chão e Fabiano fustigando-o com a baia da faca de ponta. O vaqueiro fica aborrecido com o menino que não se ergue, mas, por fim, sente pena e o levanta. Na sequência, a cachorra Baleia toma a frente da família e o narrador relata a morte do papagaio na areia do rio. Nesse fragmento, o narrador faz uma descrição do espaço por onde marcham Fabiano e sua família e ainda retrata o estado físico e psicológico em que as personagens se encontram. Podemos perceber, assim, que há um predomínio da descrição sobre a ação.

Já o texto fílmico principia com a câmera fixa focalizando a vegetação árida, uma árvore seca, em segundo plano, e o chão arenoso e rochoso; já ao longe, em último plano, vai surgindo a família de retirantes que prossegue em sua caminhada. A câmera faz um ligeiro movimento para a esquerda, de forma a enquadrar mais uma parte da vegetação estéril, de onde vem se aproximando, gradativamente, Fabiano e sua família, buscando sempre um ajuste em que permita evidenciar as personagens e o ambiente da seca.

Diante das duas passagens – a do texto e a do filme –, percebemos que alguns elementos próprios do texto literário não são passíveis de transposição para a linguagem cinematográfica, como é o caso do narrador-onisciente presente no livro de Graciliano Ramos. No entanto, é a câmera que admite a substituição do narrador presente obra literária, isto é, a imagem da câmera é que substitui a palavra desse narrador, buscando mostrar o que no livro é dito, através de seus vários planos, enquadramentos, movimentações, angulações.

Por isso, a objetividade câmera procura mostrar, grande parte do filme, a vegetação infecunda do Nordeste brasileiro – tão bem descrita na obra por Graciliano Ramos –, buscando descrever o quanto esse ambiente é hostil ao homem. Ou, ainda, tenta expor, por meio de múltiplos esquemas de planos, o que é contado pelo narrador-onisciente a respeito do estado íntimo das personagens. Nesse sentido, interessa-nos a formulação de Sirino no que se refere à obra fílmica de Vidas secas:

O discurso é construído através de uma narrativa linear, a qual é constituída de: Plano Geral (PG) e Plano Conjunto (PC), os quais têm função descritiva; Plano Médio (PM) e Plano Americano (PA), que têm função narrativa: Primeiro Plano (PP) e Plano Detalhe (PD), os quais têm a finalidade de expressar a emoção dos personagens. (SIRINO, 2007, p.07)

Outra característica na obra de Graciliano Ramos é falta de diálogos entre Fabiano e sua família, reflexo do estado de animalização que se encontravam devido às péssimas condições em que viviam. A linguagem representa aquilo que de mais humano existe e a falta ou escassez dela indica, de algum modo, um grau de desumanização. O narrador, no livro, faz alusão a essa incomunicabilidade no seguinte fragmento: “Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava traduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas” (RAMOS, 2008, p.20).

Nesse sentido, Nélson Pereira dos Santos procurou ser fiel à obra literária, buscando retratar a família de retirantes em sua condição de quase completa incomunicabilidade. Cena exemplar na obra fílmica, a conversa estabelecida entre Fabiano e Sinhá Vitória ao redor da fogueira revela a problemática da comunicação existente entre a família de retirantes, a qual se estende às demais pessoas com quem mantém contato. O trecho é narrado da seguinte forma no capítulo VII do livro, intitulado Inverno:

Quando iam pegando no sono, arrepiavam-se, tinham precisão de virar-se, chegavam-se á trempe e ouviam a conversa dos pais. Não era propriamente, conversa, eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhe vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não haviam meio de dominá-las. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto (RAMOS, 2008, p.64).

Já no filme, Nélson Pereira dos Santos utiliza o cruzamento das falas de Fabiano e Sinhá Vitória, sinalizando a precariedade no diálogo entre as duas personagens, isto é, a incapacidade de estabelecer, adequadamente, uma relação dialógica entre si. Em outros momentos na obra fílmica, Fabiano e Sinhá Vitória são enquadrados pela câmera, calados, ou, mesmo, articulando palavras e gestos escassos, revelando a ausência de competências comunicativas das personagens.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fica evidente que o estudo acerca dos intercâmbios semióticos entre o sistema literário e o sistema cinematográfico oportuniza observarmos quais elementos cada código semiótico dispõe para a construção do ato de narrar, permitindo a compreensão do tipo de relações que estabelecem entre si e seus possíveis efeitos de sentido nos leitores/espectadores. Além disso, esse exame possibilita-nos apreender que determinados artifícios presentes na narrativa literária como, por exemplo, o caso do narrador-onisciente na obra de Graciliano Ramos, não admitem adaptação para o texto cinematográfico, corroborando, portanto, a impossibilidade de uma correspondência ipsis litteris entre o original e sua cópia. Por outro lado, percebemos que o texto fílmico é capaz, ao empregar mecanismos como enquadramento composto de vários planos (planos gerais, planos médios e primeiros planos), de obter um efeito semelhante ao mesmo produzido pelo texto literário, como no caso do grande fluxo de consciência das personagens na obra de Graciliano Ramos, que é representado na obra fílmica por meio de imagens. Nesse sentido, a obra de Nélson Pereira do Santos manteve-se fiel à obra de Graciliano Ramos, retratando a família de retirantes em seu estado de mazela corporal e espiritual, do mesmo modo que é apresentada na obra literária.

[1] ALVES, Jorge. Disponível no site: http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/. Acesso em 29/06/09.


6 REFERÊNCIAS

BELLO, Maria do Rosário Lupi. Oralidade e narratividade da enunciação fílmica: a adaptação cinematográfica de Amor de perdição: memórias de uma família. Lisboa: Universidade Aberta, 2005.
BUESCU, Helena. Em busca do autor perdido. Histórias, concepções, teorias. Lisboa: Edições Cosmos, 1998.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4ª ed. rev. e ampliada. São Paulo: Ática, 2006.
FILHO, Domício Proença. A linguagem literária. São Paulo: Editora Ática, 1986.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 106ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
REIS, Carlos. O conhecimento da literatura, introdução aos estudos literários. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
SANTOS, Nélson Pereira dos. Vidas secas. DVD. Brasil, 1963, 103 min.
SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. São Paulo: Ática, 2007.
SIRINO, Salete Paulina Machado. Vidas secas: da literatura ao cinema, uma reflexão sobre suas possibilidades educativas. In.: Revista Científica/FAP 2, v. 2, p.99-116, 2007.
http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/. Acesso em 29/06/09.

3 Response to " "

  1. Paula: pesponteando says:
    10 de julho de 2009 às 18:27

    volto depois p ler com calma... mto bom!!!!!!!!!

  2. Era Ana Paula, agora é Natasha. E Carolina é uma menina bem difícil de esquecer. says:
    18 de julho de 2009 às 08:22

    Muiiito comprido!!!! Eu realmente não li, mas o cachorro é bem bonitinho hehehe
    Rafa, tu é presença confirmada no meu blog e na minha vida... Beijão, sempre!

  3. Unknown says:
    18 de julho de 2009 às 09:22

    Tentarei ser mais breve nas próximas publicações, pois como diz a máxima latina "Esto brevis et placebis", ou seja, "Sê breve e agradarás"... bjus e obrigado pelos comentários... já é de casa nesse blog!

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