A INFLUÊNCIA QUIXOTESCA AO REDOR DO MUNDO

Mundialmente, a obra Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes foi lida por distintos escritores da literatura universal, de diferentes nacionalidades; e, não raro, podemos hoje observar traços quixotescos em obras consagradas no mundo inteiro. Façamos, desta forma, uma breve tour por alguns dos escritores cuja obra cervantina repercutiu em seu trabalho.

O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) era um grande conhecedor e admirador da obra de Miguel de Cervantes. Tendo escrito três ensaios, ele chamava atenção especialmente para a mistura entre “o mundo do leitor e o mundo do livro”. Trata-se da narrativa dentro da narrativa – presente no cerne de Quixote – assim como n’As Mil e Uma Noites. Já no conto Pierre Menard, autor do Quixote, Borges narra a história do padre francês Pierre Menard, que deseja reescrever a história de um clássico da literatura para os leitores do século XX. Assim, o escritor argentino “opera uma inversão ficcional típica de sua escritura labiríntica e especular ao apresentar, como verdade, a existência de um outro autor para a obra de Cervantes – ou, ao menos, de trechos dela” (DAMAZIO, 2006, p. 82).

O texto, para confundir o leitor sobre a continuidade do tempo e a veracidade da história, ou sobre o conflito entre a veracidade do mundo literário e as idiossincrasias do mundo real, mistura ficção e ensaio. Como poderia o padre francês escrever retroativamente trechos de uma obra do século XVII? Pergunte-se ainda: como ficou essa nova versão? Exatamente igual... é a desconcertante resposta. Pierre Menard reescreve toda a obra, linha por linha, parágrafo por parágrafo; repetindo – inclusive – os pontos, as vírgulas e os todos os erros narrativos, estilísticos e gramaticais da primeira edição. Assim, “o nó desse enigma borgiano está no detalhe de que Menard não escreveu “uma versão” do Quixote, mas o próprio texto, em pleno século XX. Nessa perspectiva assombrosa, Cervantes seria uma criação de Menard... [...]” (DAMAZIO, 2006, p.82).

Desta forma, não foi necessário que se modificasse o texto original, a fim de que surgisse um outro em seu lugar; pois, basta que o tempo passe, que novas idéias surjam, novos modismos, estruturas sociais e econômicas apareçam, para que se forme um novo leitor, responsável por uma nova leitura, completamente diferente da feita anteriormente. Assim, a obra, ano após ano, seria continuamente reescrita, não por quem a escreveu, mas por aqueles que a lêem.

A genialidade de Borges vai além, deixando-nos categoricamente enredados nos labirintos da ficção, ou ficções, como prefere o poeta argentino: o personagem fictício Pierre Menard seria o autor verdadeiro de Quixote, dentro da realidade ficcional do conto em que o Borges real dialoga com o Menard engendrado por Borges sobre os meandros da elaboração narrativa da obra de Cervantes, entendida agora como de autoria de Menard.

O russos também não ficaram de fora da vasta lista dos que absorveram a idéia de luta entre o sonho e a realidade, sobre tudo com o escritor Fiódor Dostoiévski (1821-1881), autor de O Idiota, Os Demônios, Crime e Castigo, entre outros. O escritor chegou a afirmar que:

“Não existe nada de mais profundo e mais poderoso em todo o mundo do que esta peça de ficção. E ainda expressão final e maior do pensamento humano, a mais amarga ironia de que um ser humano é capaz de expressar. E se o mundo viesse a acabar e a pessoa fosse ali inquirida: “Bem, você entendeu alguma coisa de sua vida na Terra e tirou dela alguma conclusão?” A pessoa poderia silenciosamente mostrar o Dom Quixote e dizer: “Aqui está a minha conclusão acerca da vida. Você pode condenar-me por ela.”

Em O Idiota, publicado em 1868, romance intenso sobre os sentimentos humanos que percorre os mais sórdidos e os mais elevados, e que expõem um painel devastador de tipos e ambições, Dostoiévski inspira-se no personagem cervantino para conceber o protagonista Míchkin, um príncipe que vive na decadência e solidão, entregue às incertezas da vida. A intenção do escritor russo é retratar “um homem positivamente bom”, como ele mesmo refere-se em uma carta à sobrinha, afirmando ainda que:

"Não há nada mais difícil no mundo e isso é especialmente verdadeiro hoje em dia. Todos os escritores, não somente os nossos, mas também os europeus, que alguma vez tentaram retratar o positivamente bom, sempre fracassaram. Porque o problema é infinito, o perfeito é um ideal, e este ideal, seja dos nossos, ou do europeu civilizado, está ainda longe de ter sido trabalhado. Existe apenas uma personagem positivamente boa no mundo: Cristo. De tal modo que fenômeno desta ilimitadamente, infinitamente boa personagem é já em si mesma um milagre infinito. Devo somente mencionar que das personagens na literatura cristã, a mais completa é o Dom Quixote... Mas ele é bom porque ao mesmo tempo ele é ridículo.”

O personagem dostoievskiano representa o espírito imaculado que se encontra levado aos desvios e precipícios de uma detestável e desencantadora realidade, e que acaba por envolver-se em um triângulo amoroso perturbador com o libertino Rogojin e a graciosa Nastácia Filipovnea. A bondade de Míchkin é posta à prova e escarnecida. Dostoiévski, com brilhantismo incomum, afronta temas cruciais que moldam a mentalidade da vida contemporânea, tais como nacionalismo e universalismo, misticismo e materialismo; paixão e razão, barbarismo e senso de humanidade. Assim, no solo instável da literatura, Dostoievski faz do ficcional o mecanismo que irá fazer o homem refletir sobre suas angústias mais profundas.

Já o grande romancista russo Ivan Turgueniev (1818-1883), figura respeitável na literatura ocidental, escreve um ensaio intitulado Dom Quixote e Hamlet. Trata-se de um ensaio sobre esses dois personagens no qual o escritor russo chama a atenção exatamente para o que há de exteriorização de um personagem virado para fora, como Dom Quixote, e outro para dentro, como o pesaroso e meditativo Hamlet.

Na ficção alemã, podemos citar Thomas Mann (1875-1955), autor de obras como Doutor Fausto e A Montanha Mágica. O escritor alemão sofreu uma grande influência de Miguel de Cervantes e de Dom Quixote, deste modo, não é de se admirar que na sua obra de Thomas Mann, ironia e humor estejam tão presentes. Em um ensaio denominado A Bordo com Dom Quixote, Thomas Mann narra a viagem que fez de barco, de Hamburgo a Nova Iorque, quando o escritor teve que se exilar nos Estados Unidos devido à perseguição nazista.

O escritor conta que levou consigo uma tradução para o alemão de Dom Quixote. No decorrer da viagem, Thomas Mann vai lendo a obra e fazendo uma espécie de diário de bordo, no qual acaba, de vez em quando, referindo-se à leitura da obra cervantina. De fato, foi de tal maneira obsessiva aquela leitura que, ao se aproximar de Nova Iorque, o escritor alemão faz a seguinte anotação: “Ontem à noite, sonhei com Dom Quixote. Ele tinha um enorme bigode, magro, de olhos cavados”. Muitos críticos compararam, aqui, a figura de Dom Quixote vista por Thomas Mann em seu sonho com a do filosofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900).

O famoso romancista, ensaísta, jornalista e político peruano Mario Vargas Llosa (1936), um dos maiores escritores de língua espanhola, autor de Batismo de Fogo - “La cuidad y los perros” - (1963), afirmou que: “o sonho que converte Alonso Quijano em Dom Quixote de la Mancha não consiste em reatualizar o passado, mas em algo bem mais ambicioso: realizar o mito, transformar a ficção em história viva.” Miguel de Cervantes – com engenho – satiriza impiedosamente os livros de cavalaria, sob a aparente ingenuidade desses contos clássicos de aventuras; esse é o grande tema da obra que, segundo Llosa, “é a ficção, sua razão de ser e o modo como ela, ao infiltrar-se na vida, vai modelando-a e transformando-a”.

Por último, o escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880), no romance Madame Bovary, publicado em 1857, apresenta-nos Emma Bovary, personagem feminina influenciada pelo espírito quixotesco. Flaubert concebe – em um ambiente influenciado pelas idéias positivistas, no qual a ficção aspirava a tratar a realidade de modo quase científico –, uma personagem “sonhadora e perturbada por uma visão livresca e idealizadora do mundo” (DAMAZIO, 2006, p. 78). Emma Bovary – um dom quixote de saias – possui uma imaginação exaltada, identificada com heroínas apaixonadas e educada nos romances; recusa a aceitar a realidade que a cerca: sua vida medíocre em uma cidadezinha francesa. Da mesma forma como ela recusa o casamento enfadonho com o médico interiorano Charles Bovary. A personagem de Flaubert aproxima-se do fidalgo Dom Quixote em sua busca insana por um amor ideal e aventureiro. Ficção e realidade, portanto, confundem-se na alma de ambos os personagens.
Rafael Nunes Ferreira
Universidade Federal do Pampa - Unipampa

REFERÊNCIAS:

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro, Alhambra, 1987.
WATT, Ian. [trad.] PONTES, Mário. Mitos do Individualismo Moderno. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997.
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. [Trad.] AMADO, Eugênio. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha – Volume I. Belo Horizonte-Rio de Janeiro, Itatiaia, 1997.
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. [Trad.] AMADO, Eugênio. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha – Volume II. Belo Horizonte-Rio de Janeiro, Itatiaia, 1997.
RAMOS, Mário Amora. Dom Quixote – Quatro Séculos de Modernidade. São Paulo, Novo Século Editora, 2005.
PINTO, Manuel da Costa. DVD: Mitos Literários do Ocidente e a Modernidade. Cultura-Espaço Cultural CPFL.
BETTO, frei. A Razão Crítica de Cervantes através da Loucura de Dom Quixote. Artigo publicado no sítio www.voltairenet.org, São Paulo, 2005.
Sítio http://www.wikipedia.org/.
ANTUNES, Álvaro de Araújo. Artificiosos e Verdadeiros: Leitores e Práticas de Leitura em Dom Quixote de la Mancha.
VALVERDE, Maria de la Concepctión Piñero. Notas sobre a Loucura Quixotesca em Quincas Borba.
PITOL, Celso Augusto Uequed. Dez Maneiras de Falar sobre Dom Quixote. Ensaio publicado no sítio www.digestivocultural.com. Canoas, 2005.
Encyclopaedia Britannica – Desktop Encyclopedia
SCLIAR, Moacyr. O Caso Dom Quixote. Revista Mente e Cérebro. Edição 147, abril/2005.
Revista Entreclássicos. Edição 3: Miguel de Cervantes. Duetto. 2006.

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