QUINTANA, A POESIA COMO SUBTERFÚGIO DE UMA REALIDADE SEM POESIA







Rafael Nunes Ferreira
Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA

A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que aos homens deram os céus.
Com ela, não se podem igualar os tesouros que a terra guarda, ou que o mar encobre.
Pela liberdade, assim como pela honra, pode-se – e deve-se – arriscar a vida.
Por outro lado, o cativeiro é o maior mal que pode sobrevir aos homens.

(Miguel de Cervantes)

I

Existem diferentes maneiras de se proceder a leitura e a análise de um texto ficcional. Se, por um lado, podemos privilegiar o próprio texto, sua estrutura (ou forma) lingüística, ou enfatizar seu contexto, o que significa estabelecer uma relação entre texto literário e sociedade; por outro, podemos focalizar na relação entre linguagem, identidade e sujeito, ou, ainda, observar a recepção da leitura e seus vários efeitos sobre o leitor.

Há, portanto, uma gama de correntes literárias que procura analisar a literatura através de enfoques lhe são peculiares, e, ainda, que se utilizem todas do mesmo material, ou seja, a produção ficcional. Desta forma, cada corrente tenta construir uma análise que valoriza determinados aspectos em detrimento de outros. Essa diversidade de orientações, como afirma Acízelo de Souza,

[...] deve ser vista como inerente à própria dinâmica dos estudos e pesquisas, que, no seu afã de fazer avançar o conhecimento, propõem modelos explicativos sempre aperfeiçoáveis e, portanto, sujeitos a críticas e impugnações procedentes de outros modelos alternativos (SOUZA, 2007, p. 58).

Percorramos por três das principais teorias literárias surgidas no século passado, as quais possuem abordagens totalmente diferentes umas das outras, a saber: Sociologia, Psicanálise e Estética da Recepção – sendo que da corrente sociológica esboçarei por último, por se tratar da teoria a qual me valerei para analisar a obra A rua dos cataventos (1940), do poeta gaúcho Mario Quintana.

PSICANÁLISE — Segundo Culler (1999), a corrente psicanalítica teve impacto, dentro dos estudos literários, não apenas como uma modalidade de interpretação, mas, ao mesmo tempo, como uma teoria acerca da linguagem, da identidade e do sujeito. Esse impacto da corrente psicanalítica foi maior a partir do trabalho realizado por Jacques Lacan, psicanalista francês que “montou sua própria escola fora do establishment analítico e levou ao que ele apresentou como um retorno a Freud” (CULLER, 1999, pág. 123). Para Lacan, o sujeito é um efeito da linguagem, por isso ele enfatiza o papel crucial na análise do que Freud chamou de transferência, na qual o analisando põe o analista atuando como figura da autoridade do passado.

Para Freud, a compreensão de uma obra de arte é impraticável sem os conceitos da Psicanálise, ou seja, sem interpretá-la, descobrir-lhe o significado e o conteúdo. Segundo o psicanalista austríaco, era de seu interesse saber de quais fontes o artista extrai seu material e desperta em nós emoções as quais desconhecemos. Daí a idéia de que o texto literário – da mesma forma que o texto do paciente –, exige interpretação. Porém, uma interpretação que jamais deva privilegiar apenas um sentido em detrimento de outros possíveis, uma vez que uma das principais características da linguagem é a polissemia. Assim, a interpretação pode apresentar novas significações, entretanto, o crítico ou analista apresenta-as sem jamais afirmar que existe uma única leitura possível ou mesmo verdadeira.

Quanto ao psicanalista francês Jacques Lacan, sua obra trata-se de uma relevante reestruturação do freudianismo para aqueles interessados pela questão do sujeito humano, seu espaço na sociedade e, acima de tudo, sua relação com a linguagem (EAGLETON, 1983, p. 176). O que Lacan procura fazer em sua obra é uma reinterpretação freudiana sob a ótica das teorias estruturalistas e pós-estruturalistas do discurso.

Além disso, pode-se dizer que a crítica literária psicanalítica tem como objetos de estudo o autor, o conteúdo, a construção formal e o leitor; pode ser considerada uma “revisão secundária” do texto, na qual surgem novas significações, sem, contudo, privilegiar nenhuma delas, a fim de aprofundar-se em seu conteúdo, não apenas no eixo horizontal (sintaxe e articulação de sintagmas), mas em sua complexa relação de figuras. A Psicanálise busca entender a razão pela qual as obras literárias causam grande prazer nos leitores, e por que estes, ao lerem, encontram tanto prazer nessa atividade.

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO — Surgiu no final da década de 60, mais exatamente no ano de 1967, na Universidade de Konstanz – localizada na cidade alemã homônima, através do teórico Hans Robert Jauss. Segundo Jauss, essa corrente teórica consiste numa pesquisa acerca da recepção da literatura e seus efeitos no leitor, procurando empreender uma análise transcendente da obra literária, que valoriza a forma de recepção do leitor ao invés da mensagem propriamente dita. Jauss ainda propõe a análise da experiência do leitor ou da sociedade de leitores de um tempo histórico determinado, recusando a tradicional teoria dos gêneros.

Segundo o professor e teórico Wolfgang Iser, um dos maiores expoentes da Estética da Recepção, juntamente com Jauss, é diante dos vazios do texto, isto é, dos espaços abertos para a plurissignificação, que deverá o leitor preenchê-los com a sua própria imaginação, uma vez que o texto literário não é constituído somente de linhas, mas também de entrelinhas, de lacunas e, sobretudo, do ato de ler. Isso implica dizer que qualquer obra de arte literária só será efetivada, só será re-criada, à medida que o leitor a legitimar como tal, relegando para o plano secundário o trabalho do autor e o próprio texto criado.

A Estética da Recepção nasceu do questionamento tanto das análises imanentistas – centradas tão-somente nos arranjos de linguagem do texto –, quanto das análises sociológicas – as quais se apóiam em uma visão de literatura como transparência e/ou condicionamento direto a situações sociais. Essa corrente, por outro lado, pretende valorizar um componente até então pouco considerado pela teoria da literatura: o leitor do texto. Desta forma, sem eleger o leitor ideal, a Estética da Recepção almeja analisar a multiplicidade de interpretações, as diversas constituições de sentido geradas pelos textos, direcionando, portanto, o interesse dessas pesquisas para questões de natureza histórica e sociológica.

A Estética da Recepção é, pois, uma teoria que procura abarcar em sua análise, todos os elementos do processo de comunicação, dando ênfase no receptor.

SOCIOLOGIA — Essa corrente, como próprio o nome nos revela, caracteriza-se pela abordagem das condições que demonstram a realidade social do fato literário; desta forma, segundo a ótica sociológica, toda obra literária é produto de uma realidade social. Esse modelo estabeleceu-se, de fato, a partir da produção de teóricos como Georg Lukács, Lucien Goldmann e Theodor Adorno. Vejamos as principais obras e conceitos desses que contribuíram para a afirmação da Sociologia.

Em sua obra Teoria do Romance, publicada em 1914, Lukács procura investigar os componentes fundamentais que caracterizam o surgimento do romance como gênero literário. Para o teórico húngaro, o surgimento do romance se dá devido a modificações ocorridas na sociedade, isto é, para ele, o romance deve ser explicado à luz do “desamparo transcendental” do mundo burguês. Lukács parte do estudo da existência de um herói romanesco – o herói problemático –, em busca de valores autênticos numa sociedade a que ele chama “demoníaca”, ou “degradada” – termo empregado por Goldmann, em sua obra Sociologia do Romance, de 1961.

Lukács deixa claro, no prefácio de Teoria do Romance, a relação entre forma romanesca e mundo, a partir das transformações ocorridas neste:

[...] a problemática da forma romanesca é o reflexo de um mundo deslocado. É por isso que o caráter “prosaico” da vida não passa de um sintoma, entre muitos, do fato de, de agora em diante, a realidade só fornecer à arte um campo desfavorável, de modo que o problema central para a forma romanesca consiste em que a arte deve terminar com as formas totais e fechadas que nascem de uma totalidade em si acabada [...] (LUKÁCS, 1914, p. 15)

O teórico húngaro ainda elabora uma tipologia do romance e, baseando-se na relação entre herói e mundo, faz a distinção entre três formas do romance ocidental do século XIX, somadas a uma quarta que se exprime, sobretudo, nos romances de Tolstoi, que se orientam mais para a epopéia. São elas: o romance do “idealismo abstrato” (Dom Quixote e O Vermelho e o Negro); o romance psicológico (Oblomov e Educação Sentimental) e, por fim, o romance educativo (Wilhelm Meister e Heinrich, o Novato).

Já Lucien Goldmann, em sua obra Sociologia do Romance, de 1961, busca analisar a obra de Lukács paralelamente com a do filósofo, historiador e filólogo francês René Girad. Para Goldmann, o romance, no sentido que lhe emprestam Lukács e Girad é:

[...] um gênero literário no qual os valores autênticos, tema permanente de discussão, não se apresentam na obra sob forma de personagens conscientes ou de realidades concretas. Esses valores existem apenas em forma abstrata e conceptual na consciência do romancista, onde se revestem de um caráter ético. Ora, as idéias abstratas não têm lugar numa obra literária, onde constituiriam um elemento heterogêneo. (GOLDMANN, 1961, 14)

Por isso, afirma Goldmann, o problema do romance é fazer daquilo que há na consciência do romancista de ético e abstrato o componente essencial de uma obra onde essa realidade não existiria senão à maneira de uma ausência não tematizada (GOLDMANN, 1961, p. 14). Para Goldmann, a afinidade entre a própria forma romanesca e a estrutura do meio social onde ela se desenvolveu, ou seja, do romance como gênero literário e da moderna sociedade individualista, seria o primeiro problema a ser abordado por uma sociologia do romance.

Nesse sentido, Goldmann aponta para o fato de o romance ser a “transposição para o plano literário da vida cotidiana na sociedade individualista nascida da produção para o mercado” (GOLDMANN, 1961, p. 16). Para esse teórico, o romance do herói problemático caracteriza-se, portanto, contrariamente à opinião tradicional, como uma forma ligada, sem dúvida, à história e ao desenvolvimento da burguesia, mas que não é a expressão da consciência real ou possível da classe.

Por fim, a obra de Theodor Adorno, de 1975, intitulada Discurso sobre lírica e sociedade, propõe uma análise sociológica da lírica. Segundo Adorno, a relação com o social serve para nos aproximar ainda mais da obra de arte, uma vez que o tema expresso no poema lírico não se trata apenas da expressão de emoções e experiências individuais, uma vez que ocorre uma inversão do individual que eleva o poema lírico ao geral, através do processo de se tornar manifesto algo não deformado, não apreendido, ainda não associado, antecipando, assim, espiritualmente, algo de uma situação na qual nenhuma generalização má, que é profundíssima particularidade, se vincula ao outro, ao humano. O poema lírico espera o geral da individuação sem reservas. Mas tal generalidade do conteúdo lírico é essencialmente social.

Segundo Adorno, o poema lírico – essa palavra virginal –, implica o protesto contra uma situação social que cada indivíduo experimenta como hostil, estranha, fria e opressiva – situação que se imprime negativamente na forma lírica. No processo contra uma situação social, o poema exprime o sonho de um mundo no qual as coisas fossem de outro modo. A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, ao domínio das mercadorias sobre os homens. Adorno afirma que a formação lírica é sempre, ao mesmo tempo, expressão subjetiva de um antagonismo social. O sujeito lírico não só encara o todo, e tanto mais compulsoriamente quanto mais adequadamente se manifesta, como também a subjetividade poética deve a si mesma o seguinte privilégio.

Em suma, o que o sociólogo alemão afirma é que não se trata da pessoa poeta, de sua psicologia, nem de seu ponto de vista social, mas do poema, simplesmente, como quadrante histórico-filosófico.

Enfim, após a breve abordagem dessas três teorias, através da ótica de alguns de seus maiores contribuintes, passo então à análise — à luz da teoria sociológica, sobretudo, a partir da obra Discurso sobre lírica e sociedade —, de A rua dos cataventos, do poeta gaúcho Mario Quintana.

II

A obra em questão trata-se do primeiro livro do poeta alegretense Mario Quintana, publicado no ano de 1940, e é composto por um conjunto de 35 sonetos. A rua dos cataventos expressa em seu teor várias das preferências temáticas do poeta Quintana e muitos dos assuntos que serão recorrentes ao longo de toda a sua obra. Através de uma poesia cheia de uma fina ironia, de uma simplicidade enganadora e de uma vocação lírica que lhe é toda peculiar, Quintana desenha-nos um cotidiano – signo de sua visão da poesia e do mundo –, onde se percebe, de fato, o choque entre uma sociedade racionalizada e racionalizante (a sociedade moderna capitalista) e um sujeito ainda preso a sentimentos demasiado humanos – o sujeito lírico.

Um choque que Quintana transfigura em versos de uma fundura filosófica e que lhe servem, ao mesmo tempo, de ponte para um outro mundo – que difere, sobretudo, da realidade a qual Quintana extrai inspiração para seu poetizar. Por isso, creio que o poeta alegretense tenha se empenhado, não apenas em compor sua obra poética da melhor forma possível, mas de mesmo modo a tenha usado como válvula de escape de um universo ao seu redor ‘sem poesia’. Universo da clausura social e da inépcia profundas.

É a partir dessa apreciação que almejo cá evidenciar, sob a ótica da Sociologia, de que modo o poeta gaúcho apreendeu todo esse peculiar universo em transformação a sua volta, e de que forma a obra A rua dos cataventos serve, ao mesmo tempo, de espelho e de subterfúgio deste mundo no qual se insere a moderna sociedade capitalista.


III


Adorno afirma, em Discurso sobre lírica e sociedade, que “só entende o que diz o poema aquele que percebe na solidão do mesmo a voz da humanidade” (ADORNO, 1975, p. 344). Se analisarmos a voz do poeta Quintana, essa voz repleta de um lirismo que está constantemente chocando-se com uma realidade que a contraria, isto é, impregnada por uma racionalidade fria, podemos – e o leitor há de concordar comigo –, aceitar que essa voz não se trata apenas dos anseios e angústias do poeta Quintana, mas que, de fato, podemos considerá-la como a voz de uma “humanidade” constituída por sujeitos que ainda não foram “formatados” por completo em sujeitos/produtos de uma sociedade coisificada.

Analisemos então alguns fragmentos de sonetos de A rua dos cataventos, para que possamos perceber mais nitidamente esse embate entre sociedade (degenerada, fria, atroz...) e indivíduo (ainda não “coisificado”, humano, idealista...) e as “fugidas” poéticas as quais Quintana tão bem se aproveita. Vejamos:

Escrevo diante da janela aberta [...]
[...] Sempre em busca de uma nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas... [...]
Vago, solúvel no ar, fico sonhando... [...] (QUINTANA, 2005, p. 19)

O trecho acima fora extraído do soneto I. Logo no primeiro verso, o poeta coloca-se diante da “janela aberta” para escrever. Creio que podemos decodificar que essa “janela aberta” diante do poeta trata-se de uma metáfora que Quintana emprega para se referir à visão do mundo que precede sua escrita. Ora, se o poeta gaúcho se assenta diante da janela aberta – uma janela para o universo à sua volta – para que possa registrar suas reflexões acerca do que observa, então neste caso podemos concluir que, de fato, sua poesia é, segundo aquilo que é um dos conceitos da corrente sociológica, um produto de uma realidade social.

Só que para Quintana essa visão nem sempre é aprazível, e por isso ele se empenha em contorná-la, “sempre em busca de uma nova descoberta” que possa colorir “as horas quotidianas” (horas opacas!), e que o poeta gaúcho parece ter sempre buscado combater. Ademais, é mister observar que o sentimento de Quintana não se trata de puro subjetivismo, pois, com efeito, podemos considerá-lo objetivamente como a voz daqueles que se vêem inertes como Quintana (e, certamente, há muitos) ante a uma realidade hostil, estranha, fria e opressora.
Segundo o professor Paulo Becker:

A poesia de Quintana, que possui o caráter individual e espontâneo próprio da lírica e passa ao largo da realidade histórica de seu tempo, também transmite uma visão utópica da existência. Mas a utopia de Quintana se volta antes para o plano da objetividade, da relação do homem com a natureza, do que para o plano individual. (BECKER, 1996, p.40)

Nesse ponto, cabe lembrar que para Adorno (1961), no protesto contra uma situação social, o poema exprime o sonho de um mundo no qual as coisas fossem de outro modo. A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, ao domínio das mercadorias sobre os homens. E mesmo que a obra de Quintana não tenha sido engajada como fora, por exemplo, a do poeta Carlos Drummond de Andrade, é facilmente percebível o combate do poeta gaúcho contra essa realidade que nos torna tantas vezes impotentes; sonhando, através de se poetizar, um (novo) outro mundo. Analisemos os seguintes trechos:

Quando meus olhos de manhã se abriram,
Fecharam-se de novo, deslumbrados:
Uns peixes, em reflexos doirados,
Voavam na luz: dentro da luz sumiram-se...
[Rua em rua, acenderam-se os telhados. [...]
[...] Os meus sapatos velhos refloriram.
Nenhum milagre agora é permitido... [...] (Ibide, 2005, p. 21)

Nos primeiros quatro versos do soneto III, percebe-se um sujeito que ao abrir os olhos pela manhã deixa-os novamente fechá-los “deslumbrados”, pois que, ao invés de enfrentar a realidade dura da condição humana (a realidade sem poesia, racionalista), prefere o encanto de recriá-la tenramente. Um mundo não de incertezas, vazios, e obrigações — mas outro o qual nos sentimos tomados por uma volúpia de sentimentos cordiais e humanos.

E Quintana soube muito bem recriá-lo no poema, com peixes em reflexos doirados, telhados acesos e sapatos refloridos. É mister notar a duplicidade do vocábulo “luz” (brilho, fulgor, contraposto a uma obscuridade social); o uso do verbo “acender”, sinônimo de fazer arder, queimar, incendiar; a presença novamente do verbo “reflorir”, isto é, rejuvenescer, reanimar, revigorar. Talvez tenha sido isso que Quintana tanto buscara em seu poetizar: conceber um universo rejuvenescido, revigorado, cheio de fulgor, e, acima de tudo, onde se faça arder o sentimento mais humano que há dentro de cada indivíduo.

Em outro fragmento, agora do soneto VIII, observamos:

Recordo ainda... E nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos s meus brinquedos de criança... [...] (Ibide, 2005, p. 26)

A evocação do passado, da lembrança de uma meninice imaculada acolá de um presente degradado, é sem dúvida para Quintana uma maneira de tentar refugiar-se de uma existência por vezes dorida. Pensemos os seguintes versos: “Recordo ainda... E nada mais me importa...” Percebemos aqui a presença de um sujeito/poeta possuído por uma necessidade de regredir à infância, de esquecer-se de tudo, pois “nada mais importa”. A infância é um lugar para proteger-se do “vento de Desesperança” que veio, como tudo indica, com a idade adulta, onde novamente há ausência de cores e apenas observamos as “cinzas pela noite morta!”.

O poeta imerge em seu lirismo para reconstruir o universo que o cerca, por isso, o tempo, a infância, o suicídio e a morte são temas recorrentes, pois todos denotam regresso, mudança, transformação... A poesia de Quintana não só revela uma angústia existencial, uma inadaptação à vida nesses tempos modernos, mas as repelem, as combatem. Sua poesia é a tentativa de convencer o leitor que se identifica preso a este mundo vilão e degradado, ou melhor, o sujeito reduzido a um ofício desagradável, ou preso a um dia-a-dia enfadonho e sádico, enfim, e que irá se coligar com o sentimento do poeta, reivindicando o seu direito a voltar a ver o mundo com os olhos pueris, a perceber as cores desse mundo que não é somente mercadorias.

Um dos mais belos sonetos de A rua dos cataventos descreve uma sucessão de assassinatos, sendo que a cada assassinato há concomitantemente a sensação de uma perda. Analisemos:

Da vez primeira que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha... (Ibde, 2005, p. 35)

Quintana sintetiza nesse soneto um sentimento muito experimentado na contemporaneidade: o sentimento de perda que, gradualmente, vai transfigurando o homem moderno em um ser apático, frio e calculista. Esse detrimento diz respeito ao próprio estado humano de ser que se consome em um mundo consumido pela coisificação. Por isso, que o poeta a cada assassinato acaba por perder um jeito de sorrir que tinha e tantas outras coisas suas. Trata-se do sentimento de um sujeito que percebe estar num mundo de homens, cercados por outros homens, porém ao mesmo tempo tão sozinhos e vulneráveis. É evidente que cada leitor tomará para si a interpretação e a coligará à sua própria experiência de vida; no entanto, é irrefutável o fato de que o poema possibilita ao leitor essa interpretação. Pois eis aqui o poema lírico, quão o conceito de Adorno, que espera o geral da individuação sem reservas. A individuação sem reservas do poeta Quintana, mesmo que não saibamos ao certo quais são suas verdadeiras perdas nessa sociedade de mercadorias.

Para Adorno, a ficção criada pelo ‘eu lírico’ do poeta só ganha força estética na medida em que se identifica com os anseios coletivos por transformações da realidade, “aquelas forças objetivas que impelem para além de um estado social estreito e estreitador na direção de um estado digno do homem” (ADORNO, 1983, pág. 198). Para Quintana, só a palavra poderia ajudar a vencer o Dragão da Maldade (TREVISAN, 2006).

Segundo o poeta e amigo de Quintana, Armindo Trevisan:

Toda a poesia de Quintana contém vírus antiburgueses, vírus antiestablishment, antitudo o que induz o homem à indiferença social e a hipocrisia. Existem nos seus poemas, em geral, uma secreta antipatia a qualquer coisa que humilhe o homem, que o prive de sua liberdade, que o torne explorador de outros homens, que se submeta às leis do mercado e do marketing. (TREVISAN, 2006, p. 20)

Além disso, por vezes com a consciência da impossibilidade de se refugiar de fato da angústia da existência humana, Quintana sente-se tomado pela manifestação súbita e violenta da morte, como podemos observar no soneto XXVIII, no qual idealiza o momento de sua partida como sendo mais bela que a do fidalgo Alonso Quijano – o ilustre Dom Quixote de Miguel de Cervantes: “E esquecido que vou morrer enfim,/ eu me distraio a construir castelos... Tão altos sempre... cada vez mais belos!/ Nem Dom Quixote teve morte assim” (QUINTANA, 2005, p.46). A busca pela morte tem o significado de fuga, o eu-lírico sente-se impotente frente ao mundo que lhe é apresentando e vê na morte uma maneira de libertação, de escapismo.

Esse aspecto na poesia de Quintana remete-nos aos românticos que constantemente diante de uma realidade mortificada, sentiam-se levados por pensamentos mórbidos, preferindo fugir através da morte; ou mesmo através do tempo e espaço – resgatando o passado, a infância, ou criando lugares inexistentes e ilusórios. É com esse tema que o ‘boêmio esquisitão’, como o chamou Augusto Meyer, remata A rua dos cataventos: “Quando eu morrer e no frescor da rua/ Da casa nova me quedar a sós” (QUINTANA, 2005, p. 53).

De fato, diante da época à qual o poeta viveu, e à qual quase que de mesmo modo nós vivemos – época de barbárie e caos social inconcebíveis, não só nas grandes metrópoles, como, de fato, quase que generalizados –, Quintana soube muito bem retratar a angústia do homem moderno, através de sua fina ironia – por vezes transformada em sarcasmo –, de um lirismo inconfundível que sublinhou toda sua obra. Assim, podemos concluir que, apesar de uma aparência excessivamente individualista, o poeta alegretense parece ter muitas vezes se expressado melhor do que aqueles artistas ditos ‘engajados’ na luta contra essa sociedade coisificada, opressora e hostil, moldada à luz racionalista e capitalista, pois como o próprio Quintana costumava dizer: fora da poesia, não há salvação.

REFERÊNCIAS:

ADORNO, W. Theodor. Discurso sobre lírica e sociedade, In.: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
GOLDMANN, Lucien. Sociologia do Romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1961.
LUKÁCS, Georg. Teoria do Romance. [Trad.] MARGARIDO, Alfredo. Lisboa: Editorial Presença, 1914.
TREVISAN, Armindo. Mario Quintana desconhecido. Porto Alegre: Brejo Editora, 2006.
BECKER, Paulo. Mario Quintana, as faces do feiticeiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
CULLER, Jonathan. Teoria da Literatura: uma introdução. [Trad.] VASCONCELOS, Sandra. São Paulo: Beca, 1999.
SÁ, Olga de. Psicanálise e Literatura: a interpretação.
FONSECA, Juarez. Ora bolas – o humor de Mario Quintana. Porto Alegre: L&PM Editores, 2006.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
SOUZA, Roberto de Acízelo de. Teoria da Literatura. São Paulo: Ática, 2007.
DVD: Quintana – Anjo Poeta. Porto Alegre: RBS TV, 2006.

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