O REALISMO EM A MORTE DE IVAN ILITCH:
ESPELHO DE UMA SOCIEDADE DEGRADADA




Rafael Nunes Ferreira
Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA

Quem ler A morte de Ivan Ilitch deparar-se-á com a impressionante narrativa da consternação de um juiz que, ao dar de cara com uma enfermidade que o conduz à morte, passa em revista toda a sua vida, percebendo o quanto a desperdiçou com futilidades mundanas (a forma vazia das aparências), convivendo com pessoas falsas e ambiciosas. A novela narra a história do juiz Ivan Ilitch que, na instalação da nova residência em São Petersburgo, sofre uma queda ao tentar ajustar a posição da cortina e a partir daí passa a padecer de dores que, primeiramente, parecem-lhe desprezíveis, mas que com o passar do tempo acentuam-se, causando-lhe enorme amargura, não apenas pelo fato de estar sofrimento fisicamente, mas, sobretudo, ao perceber a indiferença de seus familiares a ponto de tornar-se para eles enfadonho e impertinente.

Por muitos considerada a mais perfeita novela da literatura universal, a obra de Lev Tolstói trata sem floreios de um tema universal: a morte. A morte que para o escritor russo, segundo depoimentos de amigos e familiares, parecia ser uma obsessão. A morte de Ivan Ilitch impressiona pela forma como Tolstói consegue empregar a palavra certa no momento exato em que ela se torna imprescindível, pela forma como é sutil e ao mesmo tempo tão profunda. E é esse aprofundamento na visão da existência humana do protagonista Ivan Ilitch que nos leva a enfrentar uma realidade a qual, já em sua época, o escritor russo magnificamente pode perceber: homens dados ao dinheiro e à ascensão social em detrimento da alma e do espírito – um mundo de indiferenças, de relações frias, repletas de falsidades e interesses.

Trata-se de uma novela realista, portanto, encontramo-nos nela objetividade, forte poder de crítica social, imagens sem fantasia (predomínio da razão) e valorização do que, de fato, se é – características tônicas dessa escola. Por isso também nos sentimos mais diretamente afetados pela novela de Tolstoi, pois por ser direta vai ao ponto aonde quer chegar: a crítica a uma sociedade “degradada”, como diria Goldmann (1961).

A visão de mundo de Tolstói, profundo pensador social e moral e um dos mais eminentes escritores da narrativa realista de todos os tempos, pode ser contemplada nessa arrebatadora novela. O escritor russo empenhou-se para descobrir e propagar verdades essências sobre a natureza da existência humana. E através de Ivan Ilitch, Tolstói nos revela, como em um espelho, toda uma sociedade ambiciosa e de aparências na qual estava inserido. Vejamos.

Inicialmente, podemos observar a reação de alguns juízes e um promotor, colegas de profissão de Ivan Ilitch:

[..] o primeiro pensamento de cada um dos que ali estavam reunidos no gabinete teve por objeto a influência que essa morte poderia ter sobre as transferências ou promoções tanto dos próprios juízes como dos seu conhecidos (TOLSTÓI, 2006, p. 08)

Necessariamente, é importante enfatizar que “todos gostavam dele”; porém, o primeiro pensamento que lhes veio à mente foi o que poderiam ganhar com a morte do juiz. Isso evidencia, de fato, o modo como Tolstói percebia as relações interpessoais em sua época, repletas de cobiça e carência de afeição ao próximo, principalmente em se tratando de pessoas “altamente colocadas”, como o escritor russo fez questão de realçar. Na verdade, tanto quis que foi no contraste com a figura de Guerássim, um camponês jovem, sadio e sempre apto a todas as atividades, que Ivan Ilitch encontrou um pouco de alívio, passando a solicitar a presença do criado, pois “Guerássim era o único a compreendê-lo e a compadecer-se dele” (TOLSTÓI, 2006, p. 56)

Segundo Cademartori, “a descrição minuciosa que o escritor realista busca fazer da realidade é atravessada pela preocupação moral de detectar os vícios da sociedade” (CADEMARTORI, 2004, p. 45). Ora, não é através da descrição minuciosa dos momentos de aflição pelos quais Ivan Ilitch passa que Tolstói muito habilmente nos revela os vícios de uma sociedade de superficialidades e vacuidades? Tolstói expõe a situação de um homem em estado enfermo que percebe claramente a indiferença das pessoas sadias e o tédio que provoca nelas, pois até mesmo a própria esposa o critica pela não observância das determinações médicas, atribuindo a ele toda a culpa pelos dias aborrecidos que vivia. A mesma esposa que após sua morte queria saber como obter dinheiro do Tesouro, em conseqüência da morte do marido:

Ela fingiu pedir a Piotr Ivânovitch um conselho sobre a pensão a receber; mas ele via que a mulher já estava a par, até mesmo das minúcias, mesmo daquilo que ele não conhecia: ela sabia tudo o que era possível abocanhar no Tesouro, em virtude daquela morte, mas queria saber se era possível de algum modo abocanhar ainda mais (TOLSTÓI, 2006, p. 15).

De fato, A morte de Ivan Ilitch retrata, como um espelho, uma sociedade gananciosa, e as personagens em volta de Ivan Ilitch parecem ser o estereótipo de um universo enclausurante e frio. Para Cademartori, “no realismo, pela primeira vez, revela-se o conflito do herói com a ordem social burguesa” (CADEMARTORI, 2004, p.45). Nesse sentido, o protagonista da novela de Tolstói, um funcionário rigidamente ligado ao seu dever, percebe que sua vida não passara de iniciativas para alcançar exclusivamente o que era aconselhável para as pessoas de elevado nível social, isto é, para aquelas pessoas da alta burguesia, indivíduos transfigurados por completo em sujeitos/produtos de uma sociedade coisificada.

Tolstói parece combater esse sujeito frio e calculista e Ivan Ilitch é a prova de que uma vida regrada somente por leis mundanas e racionalistas jamais conduzem o homem a algum lugar. Nesse sentido, é mister relembrar a afirmação de Hauser sobre a individualidade de Tolstói:

O próprio Tolstói manifesta toda uma série de características rousseauístas e, em certos aspectos, está mais perto do rousseauísmo do que Dostoiêvski. Sua busca obstinada pela simplicidade, naturalidade e veracidade é meramente uma variante do mal-estar de Rousseau com a cultura, e seu anseio de uma vida idílica na aldeia patriarcal nada mais é do que a renovação do velho antagonismo romântico à civilização moderna (HAUSER, 2003, p. 888).

Exemplo dessa busca obstinada pela simplicidade, naturalidade e veracidade pode ser vista projetada em Guerássim, um mujique não afetado pelas futilidades e perversidades da sociedade, e que através de gestos singelos e afetuosos, como manter as pernas de Ivan Ilitch elevadas para aliviá-lo da dor, ganhara a amizade do juiz enfermo. Além disso, é importante lembrar que A morte de Ivan Ilitch é a primeira obra escrita por Tolstói, em 1886, após seu retorno às letras. O escritor russo havia então abandonado a arte e renegado toda a sua obra pregressa para dedicar-se à vida espiritual. Esse fato apenas corrobora a idéia de que Tolstói era espectador de uma realidade terrivelmente triste. Por isso, a forte crítica social e a imagem sem ilusões de uma realidade penosa que vemos em A morte de Ivan Ilitch, e que são características predominantes da narrativa realista, acabam nos ferindo, não apenas por assistirmos aos sofrimentos físicos de Ivan Ilitch, mas também por depararmo-nos com o universo de ganância no qual Ivan Ilitch parece estar aprisionado e no qual nos identificamos muitas vezes presos.
Vejamos alguns julgamentos finais de Ivan Ilitch:

[...] teve pena de si mesmo. [...] deixou então de se conter e chorou como uma criança. Chorava a sua impotência, a sua terrível solidão, a crueldade dos homens, a crueldade de Deus, a ausência de Deus. [...] Mas, fato estranho, todos estes melhores momentos de uma vida agradável pareciam agora completamente diversos do que pareceram então. Tudo, exceto as primeiras recordações da infância. Lá, na infância, existia algo realmente agradável, e com que se poderia viver, se aquilo voltasse. [...] tudo o que parecia então ser alegria derretia-se aos seus olhos, transformando-se em algo desprezível e freqüentemente asqueroso. E quanto mais longe da infância, quanto mais perto do presente, tanto mais insignificantes e duvidosas eram as alegrias. [...] O matrimônio... tão involuntário, e a decepção, o mau hálito da mulher, a sensualidade, o fingimento! E aquele trabalho morto, e as preocupações de pecúnia, e assim um ano, dois, dez, vinte – sempre o mesmo. E quanto mais avançava a existência, mais morto era tudo. (TOLSTÓI, 2006, p. 66 e 67)

O pessimismo de Ivan Ilitch à beira da morte, as indagações do porquê de viver ou de morrer, a percepção de que sua existência foi tudo um fazer de contas, de que as pessoas ao seu redor eram todas ambiciosas e falsas, retratam uma sociedade sem valores autênticos. E é esse o horror a ser enfrentado por todos os homens. A morte de Ivan Ilitch mais do que uma novela realista que retrata a precariedade de uma classe média em ascensão por meio da carreira nos órgãos públicos, é, de fato, o espelho da brutalidade nas relações humanas, o vazio e a infelicidade de uma trajetória dedicada ao nada e a coisa alguma, sob o engodo de uma vida respeitável e honesta.

REFERÊNCIAS:

TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. [trad.] SHNAIDERMAN, Boris. São Paulo: Editora 34, 2006.
CADEMARTORI, Lígia. Períodos literários. São Paulo: Ática, 2004.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GOLDMANN, Lucien. Sociologia do Romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1961.

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