15 anos sem o maior poeta de Bagé


Por Jucelaine

            “Era o ideólogo e era o líder. Um artista não morre “, foram as palavras de Glauco Rodrigues Há exatamente 15 anos quando Bagé perdeu  seu filho ilustre.  Ele, Ernesto Calo Wayne, o mestre das letras; professor poeta e jornalista; era filho do escritor Pedro Rubens de Freitas Wayne e Leopoldina Calo Wayne. Nasceu em Bagé, a 14 de abril 1929 e faleceu na mesma cidade  em 17 de junho de 1997. Casado com Vitória Gamboa Wayne teve 7 filhos: Pedro, Valmir, Ramon, Cláudio, Dolores, James e Naira.  
            Um homem  apaixonado pela literatura desde a infância por influência  do pai que guardou seu primeiro rabisco em livro quando contava tão somente 11 meses e 28 dias; rabisco este que era considerado por Ernesto como o melhor texto que escreveu em toda sua vida. O Poeta, professor, e jornalista; homem do povo que sabia tão bem inventar palavras novas, que davam uma simbologia perfeita aos sonetos que escreveu.
            Em seu soneto “Ramos de Ramon”  Ernesto  descreve com singular maestria a saga da família Ramon da Espanha ao Brasil. De charqueadores a escritores, a família Ramon soube tão bem dissecar a carne do gado quanto a alma humana. Basta analisar este pequeno trecho do soneto para perceber o lirismo presente nos versos :

Findam os Ramóns rurais,
Começam Ramóns urbanos
Termina o tempo do charque,
Charque de reses e tropas.
Não mais ressecam a carne
Do gado, Ramóns dissecam
As almas da carne humana,
Que o charque é de almas agora,
Carne e alma que conservam
Na branca cal do papel,
No sal fino que recobre
                                                                  A lisa pele da página.
             
Especialista em Língua Portuguesa, Ernesto atuou por vários  anos na Urcamp ( Universidade da região da campanha) e na UFSM ( Universidade federal de Santa Maria). Em Bagé também lecionou no colégio Auxiliadora.  Lembrado com carinho pelos alunos que afirmam em um blog na internet que ele nunca reprovou ninguém, e que era um incentivador da leitura.
Ernesto Wayne  pode ser considerado um jovem prodígio visto que com apenas 16 anos  fundou em sua própria casa no ano de 1945 o “Grupo de Bagé”. Neste dia, o pai  Pedro Wayne, estava em São Paulo por ocasião do 1º Congresso Brasileiro de Escritores. Ernesto assim descreveu  a formação do Grupo de jovens cuja idade não passava de vinte anos na época: “O Grupo de Bagé formado por artistas plásticos e poetas Danúbio Gonçalves, Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti, Clóvis Chagas, João Honorino e Júlio Meireles, todos pintores. A turma do Teatro e do conto: Ernesto Costa, Ramón Wayne e Vicente Braile; Jaci Maraschin, músico tocava piano, hoje é pastor protestante; Wilson Santos, pianista, cronista e poeta; eu (Ernesto Wayne) que lidava com versos naquela época e que tinha um volume, “obra prima intitulada “os Carnavais Póstumos”onde se podia encontrar coisas assim: “Céus abobadados reboam infinitos/ aviões abobadados já soam como risos/ e grávidas aves ávidas de gritos/ são vidas vazias graves como avisos/. Centro Cultural Machado de Assis -1959)
             Ernesto Wayne amava o jornalismo, e o fazia com imensa dedicação. Era no jornal que o autor deixava aflorar com mais intensidade o  lado humorístico. Em um artigo autobiográfico publicado no Correio do Sul, o autor diz: “Não nasci em berço de ouro- eu não! Nasci em berço bem mais rico. Nasci em berço de papel impresso em tomos enfileirados nos armários do humilde escritório de Pedro  Wayne. Segundo a poetisa Norma Vasconcellos  ele eraDelator das hipocrisias do cotidiano; mágico das metáforas, humorista irreverente, mas ao mesmo tempo um “Terno lírico”. Gilmar de Quadros o considerava “Dono de uma bagagem de conhecimentos invejável e até mesmo um merecedor do Oscar.

                                  
Obra: Ernesto Wayne, além de ser dono de um imenso acervo poético, escreveu diversos artigos científicos publicados em revistas e jornais. O autor também realizou ensaios sobre a obra de autores gaúchos, porém publicou em vida apenas cinco  livros: “Ossos do Vento” “ Extrato de contas” Baile na Ponte em Noite de Chuva”, e “Anjo Calavera” ( queimado pelo autor na noite do lançamento). “Pedro Wayne” ( ensaio sobre a vida do escritor PW publicado em Letras rio-grandenses.) . Dos artigos científicos, destacam-se entre eles “Momentos do Modernismo em Bagé “(1972) . Seus livros impressos, além dos poucos exemplares que há na Biblioteca Pública de Bagé e biblioteca da Urcamp ( Universidade da região da campanha), só é possível encontrar em sebos, visto que não foram mais editados. Do livro “ Ossos do Vento” destaco uma estrofe deste soneto que retrata a profundidade de análise de sua própria vida ao observar um retrato seu, pintado pelo artista plástico Glauco Rodrigues em 1949).
Glauco Rodrigues fez este retrato
Me vendo mais por dentro que por fora:
O quadro cada vez mais fica exato,
Quem não era antes, vou ficando agora

Rugas e lágrimas, eis que constato
Nesse rosto esfolado de quem chora,
Na cor acesa em brasa em que desato
Fogos do inferno pela face a fora.

O esvair-se em estrelas foi-se pelos
 Mil caminhos grisalhos dos cabelos,
Restam rastros de prata na moldura,

Mas , o que mais estranho na pintura
É que me ponha a contemplá-la e sinta
Que nos meus olhos nunca seca a tinta.
  
A vida: Ernesto era homem simples que soube  conviver com a dor e as carências materiais. Durante toda sua vida trocou de residência por diversas vezes por problemas financeiros, fato este que lhe impulsionou a escrever o poema: “As muitas moradias”.

.....E, se exagero um pouco e digo
Que a soma dessas casas todas
Totalizaria uma vila e
Se continuar ocupando mais
Casas, pronto se teria,
De certo, cidade cubista
Constituída, inteiramente,
Da sucessão das moradias
Em que vivi meus dias;

            Sua irreverência e humor foram a magia que cativou alunos, professores e pessoas das mais distintas camadas sociais. Ao analisar sua atuação jornalística percebemos, através de seus escritos, que sua dedicação ao ensino o acompanhava em todos os momentos.
            O poeta deixou muita saudade entre companheiros de magistério e principalmente entre poetas do Cultura sul. Suas amigas mais próximas, Norma Vasconcellos e Elvira Nascimento relembram com pesar a ausência daquele que era o primeiro a comparecer em todas às reuniões, com um maço de papel embaixo do braço. Papeis estes, repletos  de belíssimos sonetos e poesias que até hoje são guardados com carinho pelas amigas que anseiam vê-los um dia transformados  em livro póstumo.
            Nesta foto podemos ver a grande quantidade de polígrafos datilografados com sonetos e poemas de EW , que encontram-se em posse de uma amiga, também escritora e membro do Cultura sul*.
             Desta série de sonetos, alguns nos chamam a atenção pelo título que ostentam:” Poeta Na Cadeia” ; conta sua própria história na cadeia por 3 meses, por ocasião do golpe militar em 64; e   “ O último Trem de Bagé”, que fala sobre a última viagem do trem que partiu de Bagé.
            Quando realizei meu Trabalho de Conclusão de Curso na Unipampa sobre a Constituição de  Acervo Literário de Ernesto Wayne, fiz um apelo veemente às professoras que participaram da minha banca para que o Curso de Letras da Universidade se encarregasse de tornar o autor conhecido no meio acadêmico e que sua obra fosse  divulgada e reconhecida como  patrimônio histórico de Bagé; isto acontecendo, será a concretização de um sonho  que permeia a mente dos companheiros e admiradores de Ernesto
Wayne. Afinal, ninguém mais do que ele soube descrever tão bem as ruas , praças e gente da nossa Terra. Sua obra está permeada da vida na sociedade bajeense em sua época. O soneto “Bares de Bagé”,  revive sua trajetória como homem do povo acostumado à boemia. O soneto descreve os mais variados tipo de bares da cidade, todos do seu conhecimento. Em todas as décadas, o mais frequentados, os mais simples e os mais luxuosos. O poeta vai descrevendo o que acontece em cada bar, citando nomes de personagens literários mesclados com figuras do seu cotidiano, vejamos alguns trechos:

Era uma vez os bares de Bagé,
Em que tanto bebi, para fazer de conta
Não ser facada nem ferida a vida,
Se vista for de dentro da alma tonta
No corpo bambo com cabeça zonza.
Meu espírito aos tombos e trancos, tropeços
Espalhados ao longo dos meus passos
Junto a meus pares pelos bares de Bagé.....
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Era uma vez os bares de Bagé
De que se seguirá prestando conta
Cabaret do alfaia
Por entre garçons
De gravata e borboleta
E compridos aventais.
O tempo passado
De frack e polaina
Tomando pileque
Com uma cocote
Que é tempo de orgia,

Ele perambulou por todos ou quase todos os bares e cafés da cidade, conviveu com gente como ele; poetas, professores, jornalistas  artistas plásticos; enfim, trabalhadores de diversos ofícios. Ele se foi, mas como disse a poetisa Elvira Nascimento, ficou seu  jeito teimosamente bajeense de não sair das casas e fazer de  Bagé a sua Macondo e lugar de imaginação . (Correio do Sul- 21 junho 1997).
Como admiradora deste que é considerado o “poeta maior de Bagé”, foi que decidi não deixar passar em branco esta data de seu falecimento, por isto dediquei um pouco do meu tempo para relembrar a contribuição de EW para a literatura bajeense e nacional.
            Concluindo, transcrevo abaixo um de seus sonetos para que aqueles que não leram sua obra possam conferir a beleza e a tessitura de suas metáforas; e para os bajeenses que o conheceram e conhecem sua obra , deixo as palavras do professor Alcyr Britto, genro do poeta ,na ocasião do seu falecimento em 97: “ Wayne será para Bagé, o prólogo, não o epílogo”, mas para isto é preciso concordar com Elvira Nascimento, que disse que devemos falar sempre de Ernesto Wayne até que se partam as pedras do esquecimento e seu  delírio poético jorre sobre a Bagé que ele tanto amou. 

                                                         “Soneto Diante Da Cidade”.

Do alto do cerro, o precipício ao lado,
Vista de cima, à noite, se desata
Desta cidade a imagem mais exata:
Muito a cidade temos contemplado.
Um lenço branco como que a retrata,
Lenço em que a luz após haver chorado,
Sobre a treva atirasse, marejado
Da luz de sua pálpebra de prata.
Há sereno de cinzas e saudade
( O orvalho é como o pranto das estrelas)
E desliza, dos olhos, a cidade.
Como se nossas lágrimas rolassem
Encosta abaixo e, sem poder contê-las,
Luzes azuis nas ruas se tornassem

APRECIAÇÃO DA OBRA VINTE E ZINCO, DE MIA COUTO



Rafael Nunes Ferreira
Núcleo de Estudos das Literaturas Lusófonas no Pampa – NELLP

O TEMPO É a revolução que ocorre em Lisboa. O espaço privilegiado é a convulsa África, mais especificadamente, a vila moçambicana de Moebase. Contudo, tempo e espaço se misturam na obra de Mia Couto, através das conturbadas relações entre africanos e portugueses — personagens que estão condicionadas à situação colonial secular em solo africano.

POR ESSA RAZÃO, em Vinte e zinco, Mia Couto parece privilegiar a polifonia de vozes que habita esse singular tempo-espaço, devidamente localizado, de forma central,¬ na história recente destes dois povos, criando, assim, uma espécie de caleidoscópio composto de pequenos fragmentos de um cotidiano deveras arruinado pelos horrores da guerra.

DIVIDIDO EM DOZE capítulos — situados temporalmente entre 19 e 30 de abril de 1974 —, Vinte e zinco se estabelece a partir de dois núcleos, distintos entre si, mas que se complementam em simetria, uma vez que é inegável o fato de que um depende da existência do outro.

DE UM LADO, apresenta a saga da família Castro, abalada por uma série de eventos decorrentes da Guerra Colonial, suas relações com o regime fascista português e com o povo local, bem como suas primeiras impressões e reações ao acontecimento de 25 de Abril.

DE OUTRO LADO, revela o dia-a-dia de africanos que vivem próximos a essa família portuguesa que se instalara em África durante a tentativa de manutenção dos territórios ultramarinos. Personagens estas constantemente subjugadas pela autoridade colonial e suas forças opressoras.

DESSA SIMBIOSE LITERÁRIA, extraímos a situação colonial por excelência, a qual consiste nas relações entre branco/negro, opressor/oprimido, colonizador/colonizado. Eis aqui o fio condutor que une os dois distintos núcleos na obra de Mia Couto.

DE FATO, como muitas das obras escritas no decorrer do século passado, Vinte e zinco caracteriza-se por uma indissociável relação entre o universo romanesco e a realidade extraliterária que lhe dá origem. Contudo, nessa re-apresentação de Mia Couto de um momento histórico, ratifica-se o caráter negativo de toda guerra. Isto porque mesmo havendo uma aparente relação de domínio português em solo africano, todas as personagens de Mia Couto sofrem em decorrência das relações caóticas estabelecidas durante a ocupação portuguesa na Guerra Colonial:

JOAQUIM DE CASTRO perde a vida, deixando apenas o fardo colonial à sua família. Lourenço de Castro, por sua vez, é torturado pelo fantasma do falecido pai — espécie de metonímia de um regime em decomposição —, Margarida sofre não só pela perda do marido, mas também ao ver o filho aos tormentos e a irmã que enlouquecerá em África. Por isso, pensa sempre em regressar a Portugal. Irene traz consigo a loucura, objeto de estudo da Psiquiatria, mas que pode ser lida como uma outra, aquela produzida pela guerra, embora esta não seja tratada diretamente na obra de Mia Couto.

DO LADO AFRICANO, a guerra é igualmente catastrófica, como é possível perceber através do trágico fim de tio Custódio, que morre após adoecer enquanto prestava serviços no quartel português; de Marcelino, o mecânico que só reencontrara a liberdade com o suicídio; dos presos arremessados ao mar por Joaquim de Castro, da visão de Andaré Tchuvisco, punido pelo poder colonial, enfim...

DESSE RETRATO QUE Mia Couto oferece, uma legenda parece nos saltar aos olhos:

Em África, tudo é pesadelo.

REFERÊNCIA:

COUTO, Mia. Vinte e zinco. Editorial Ndjira: Maputo, 1999.

RESUMO DA OBRA VINTE E ZINCO
Mia Couto



Capítulo I – 19 de Abril:

Cansado, Lourenço de Castro entra em casa. Margarida o recebe. Ele “arrasta-se” para a casa de banho e lava as mãos. Vai à cozinha e as lava novamente. O pide deita-se. Pergunta sobre a tia Irene. A mãe desvia os olhos. Pausa. Suspiros. Lourenço examina os braços à procura de sangue. A mãe retira-se. Passam-se as horas. Os gritos de Lourenço ecoam no corredor. A mãe o socorre. Leva-o um copo de leite. Um pesadelo. Lourenço maldiz o cego Tchuvisco. A mãe pede que o filho vá ao médico. A mãe o acalma e sai.

Capítulo II – 20 de Abril:

Irene retorna tarde das lagoas. Margarida a espera na porta. Ela traz consigo um frasco velho. Irene dança em volta da irmã. O narrador explica porque ela viera para África, após a morte de Joaquim de Castro, e como se descaminhara e se misturara com os negros. Lourenço e sua desconfiança da loucura da tia. Lembrança da cena da morte de Joaquim. O propósito de Lourenço. Receio de Margarida pelo estado do filho. A raiva de Lourenço pela tia. Irene continua dançando na sala quando Lourenço chega. Irene vai ao encontro do sobrinho e lhe mostra o frasco, e explica o que é aquele líquido. Cita o nome de Tchuvisco. Lourenço ordena que não pronuncie mais o nome. Ambos se confrontam. Irene se despe frente ao sobrinho. Lourenço lhe tira o frasco e joga-o no chão. Os olhos de Irene inflamam. Ela se aproxima do local onde, em vida, Joaquim celebrava as refeições. Ela derruba a cadeira e atira o guardanapo ao chão. Lourenço ergue-se, mas é contido pela mãe. Irene lhe diz mais algumas palavras ofensivas.

Capítulo III – 21 de Abril:

Descrição do cego Andaré Tchuvisco. Três versões sobre a cegueira de Tchuvisco (a mordida da serpente, a visita da morte, a doença que lhe atingira a certa altura da vida). Relação de Tchuvisco com a família Castro (e com os brancos). O motivo que leva Lourenço a desconfiar de Tchuvisco (a mão que ajudava os negros a fugirem). Tchuvisco e seus paradeiros desconhecidos. Lourenço vai até o local onde Tchuvisco desenhara na areia. O povo também visita o local. As suspeitas de Lourenço aumentam. Ao regressar para casa, Lourenço arma uma armadilha para testar Tchuvisco.

Capítulo IV – 22 de Abril:

Tchuvisco rememora o tempo em que podia ver. Lembra da chegada de Irene a Pebane e de sua relação com Marcelino. A gravidez de dona Graça. Marcelino e suas pregações políticas. Diálogo de tio Custódio e Marcelino acerca da situação colonial. O caso do sapato. Dona Graça, seus olhos inférteis e o ritual da chuva. Tio Custódio prenuncia a cegueira de Tchuvisco. Diálogo sobre Moçambique independente. O gosto pela cegueira de tio Custódio. Tio Custódio é requerido para prestar serviços no quartel. Tio Custódio mostra a Marcelino a foto da família. Tio Custódio adoece no quartel e é mandado “já pele e esqueleto” para casa. Doente, tio Custódio convoca a família, entrega a Marcelino uma carta escrita por seu pai português. Marcelino não lê a carta. Pouco antes de morrer, tio Custódio entrega a Marcelino alguns papéis que roubara do quartel português e pede ao sobrinho que entregue aos “camaradas”. Tio Custódio morre e Marcelino toma conta da oficina. Joaquim de Castro morre. Tchuvisco adquire a cegueira. Marcelino vem a falecer mais tarde na prisão. Dona Graça desaparece na selva para nunca mais ser encontrada.

Capítulo V – 23 de Abril:

Margarida e o contato com a África. O pesadelo da seca e do cão (com aparência de gente). Um grito desperta Margarida. Ela encontra Lourenço chorando como criança. Lourenço deita-se novamente. Margarida mete-se nos atalhos da savana. Ela vai ao encontro de Jessumina. A história de Jessumina e seus poderes de feiticeira. Margarida consulta Jessumina (— Quero sabe o que se passa em minha casa. Tenho medo.). Margarida regressa ao seu lar.

Capítulo VI – 24 de Abril:

Margarida arruma a cama da irmã. Lembra de Marcelino (menção à guerra e seus horrores). Irene entra no quarto. Diálogo sobre a situação colonial em África. Irene sai, dirige-se à maçaniqueira e conversa com os mortos (as campas de Marcelino e Custódio). Margarida lê o caderno de Irene. Margarida vai à igreja. Encontra um negro, nu, rezando a missa. Padre Ramos a leva à sacristia. A história do negro do altar. Margarina retorna para casa. No meio do caminho, encontra uma multidão na praça. Dentre a multidão, Tchuvisco anuncia: “o rio está para se desprender do leito, cansado da margem, lá onde ela é pedra amontanhada”. Irene chega. Diálogo entre Irene e Tchuvisco. Jessumina aparece e Tchuvisco acalma-se. Diálogo entre ambos. Tchuvisco começa a chorar. Jessumina colhe uma gota de lágrima de Tchuvisco. Lourenço e seus homens chegam ao local. Lourenço intervém, intimidando Tchuvisco. O cego joga a bengala para o alto. A bengala transforma-se em pássaro e depois em Napolo, a cobra voadora. Napolo vai se transformando em pássaro novamente. Diamantino saco o revólver, mas Lourenço o contém. Lourenço reconhece a ave (a mesma que vira quando da morte de seu pai). O pássaro vai desenhando no céu os mesmos desenhos que tinham sido visto no chão da maçaniqueira. Um dos homens de Lourenço dispara contra a ave. Um segundo disparo (?) é ouvido. Lourenço pede que chamem padre Ramos. Chove em toda vastidão, menos na maçaniqueira.

Capítulo VII – 25 de Abril:

Lourenço chega em casa e encontra Margarida e doutor Peixoto. Margarida conta a Lourenço sobre a gravidez de Irene. Lourenço vai até o quarto de Irene e descobre suas tatuagens. A notícia do golpe militar em Lisboa. Lourenço choca-se ao receber a notícia ao passo que rememora a imagem do pai caindo nas águas. Margarida agradece a Deus a notícia sobre o golpe. Diálogo entre mãe e filho sobre “ir embora”. Lourenço vai ao lavatório.

Capítulo VIII – 26 de Abril:

No rádio, o locutor fala da Revolução dos Cravos. Lourenço desliga o rádio. É aniversário de Lourenço (42 anos?). Margarida fala sobre a possibilidade de partirem. O lugar cativo do pai de Lourenço não figura mais à mesa. Diálogo entre mãe e filho sobre a situação colonial. Lourenço, em fúria, recoloca a cadeira do pai à cabeceira da mesa. Lourenço dirige-se ao quarto, seguido por Margarida. Lourenço admite nunca ter matado um preto. Lembrança da vez em que bateu em Marcelino até quase matá-lo. Lembrança do desaparecimento de documentos da cada de Joaquim Castro. Envolvimento de Irene com a subversão. Marcelino tenta se suicidar. Irene irrompe pela cela.

Capítulo IX – 27 de Abril:

Lourenço reflete sobre o golpe: “o desacontecimento do 25 de Abril”. Lourenço dirige-se ao quarto e pega uma arma. Lourenço está decidido a matar Tchuvisco. Ao voltar da casa de Jessumina, Tchuvisco depara-se com Lourenço. Diálogo entre Lourenço e o cego. Lourenço agride Tchuvisco. Lourenço conta a Tchuvisco sobre a gravidez da tia. Tchuvisco pega a arma. Lembrança do tempo em que os dois meninos brincavam juntos. Tchuvisco atira a arma para longe. Tchuvisco revela a Lourenço que Joaquim Castro abusava sexualmente dos presos. Tchuvisco revela o motivo de ter ficado cego. Lourenço se afasta rumo aos pântanos.

Capítulo X – 28 de Abril:

Jessumina ajuda Lourenço, abandonada como um desfarrapo no meio da lama. Diálogo entre Jessumina e Lourenço. Ela revela a Lourenço que Irene não está grávida. Lourenço se lembra do búfalo atolado e do pássaro carraceiro pousado em seu dorso. Jessumina conta a Lourenço sobre o que sucedera com Diamantino. Ela descreve a cena de sua morte. Jessumina encena a festa de aniversário de Lourenço.

Capítulo XI – 29 de Abril:

Tchuvisco acorda Lourenço. Traz uma mensagem de Jessumina. Ela levara Margarida para Pebane. Lourenço pede a Tchuvisco que fique. Diálogo sobre Joaquim Castro ter cegado Tchuvisco. Lourenço revela que seu pai nunca o tratou com ternura. Lourenço aponta para os restos do álbum de fotografias rasgado. Lourenço levanta-se e dirige-se à saída. Ele diz que irá libertar os presos. Tchuvisco o impede. Tchuvisco se propõe a fazê-lo. Lourenço dirige-se à varanda e espreita a noite. Tchuvisco pergunta a Lourenço se ele irá permanecer em África. Lourenço convida Tchuvisco para caminhar. Conversam sobre crenças e desejos.

Capítulo XII – 30 de Abril:

É cedo da manhã, quando Tchuvisco segue em direção à cadeira da PIDE para libertar os presos. No caminho, parece perceber a imagem de Irene, acompanhada de Jessumina. As duas mulheres caminham para o centro do lago. Irene submerge por completo na lagoa. Homens em algazarra passam correndo, cantando e gritando por Tchuvisco. Tchuvisco chega à prisão. Encontra o corpo de Chico Soco-Soco, morto à pancada. Tchuvisco entra na sala Kula, local de torturas. Encontra Lourenço, morto, estendido no chão. Ele pergunta a um negro que ali se encontra sobre a morte de Lourenço, ao que o negro responde: “— Cada qual mata o da sua raça.” Memórias se avalancham: Custódio, Marcelino, Dona Graça, etc.

“Das lembranças emerge uma indefinível voz que murmura o que ele, no momento, deve executar. [...] Andaré Tchuvisco vai à arrecadação da prisão, traz uma lata de tinta branca e um velho pincel. E com amplos gestos ele espalha largas demãos sobre a parede. A cada pincelada, a paisagem do quarto se lava. Não há sangue, não há desordem. Não é só o morto que se esvai: a própria morte desvanece. [...]” (p.138)

 

REFERÊNCIA:

COUTO, Mia. Vinte e zinco. Editorial Ndjira: Maputo, 1999.


SHOAH (1985)

De Claude Lanzmann

A obra Shoah, de Claude Lanzamann, trata do holocausto. Nela, Lanzmann entrevista sobreviventes, ex-nazistas e testemunhas, sem fazer uso das imagens arquivos de guerra. Centrado nessas pessoas, deixa claro que o anti-semitismo que fez matar mais de seis milhões de judeus ainda existiria. Trata-se de uma obra exemplar, sobretudo em se tratando dos estudos acerca dos testemunhos em torno da Shoah. Para aqueles interessados, segue abaixo o link para download do filme, disponível no site http://www.makingoff.org/:


http://www.makingoff.org/forum/index.php?showtopic=14196&st=0&p=315144&hl=Shoah&fromsearch=1&#entry315144

TÓPICOS SOBRE HISTÓRIA, LITERATURA, MEMÓRIA E TESTEMUNHO
Da obra de Márcio Seligmann-Silva
(parte #1)

LEMBRAR DE ESQUECER / NÃO (SE) ESQUECER DE LEMBRAR


Trata da questão da historiografia, tal como foi pensada no século XX, isto é, como possibilidade de se conhecer o passado “tal como ele de fato ocorreu” (p.60) — noção (credo central do historicismo e do positivismo) esta criticada por Walter Benjamin em Experiência e pobreza, de 1933, bem como por Nietzsche em Dos usos e desvantagens da história para a vida [“É totalmente impossível de se viver sem o esquecimento” (p.60), ele diz]. Para Nietzsche, é necessário: “que se saiba esquecer na hora certa, como também que se recorde na hora certa... [...] o ahistórico assim como o histórico são igualmente necessários para a saúde de cada indivíduo, de um povo e de uma cultura” (p.61).

Controlar o tempo certo de se lembrar ou de se esquecer pode levar a falsa idéia de que o homem pode controlar a memória. A historiografia, afirma Seligmann-Silva, se aproxima desse modelo. Para ele: “ela [a historiografia] — na sua versão moderna — se quer não apenas imparcial e fria, mas também capaz de arquivar todos os acontecimentos” (p.61-62). A memória, por sua vez, opera no double bind entre lembrança e esquecimento. Em relação à dicotomia História/memória, um registro não deve apagar o outro. Yosef Yerushalmi afirmou o seguinte: “A historiografia — ou seja, a história como narração, suas instituições e os seus procedimentos — não pode [...] substituir-se à memória coletiva nem criar uma tradição alternativa que possa ser partilhada. [...] No mundo que é o nosso não se trata mais de uma questão de decadência da memória coletiva e de declínio da consciência do passado, mas sim da violação brutal daquilo que a memória ainda pode conservar, da mentira deliberada pela deformação das fontes e dos arquivos, da invenção de passados recompostos e míticos a serviço de poderes tenebrosos” (p.62-63).

A História, afirma Seligmann-Silva, “assume diante da força que ars oblivionis [arte do esquecimento] adquire — sobretudo como uma reação aos fatos extremos do século passado — o caráter de tribunal” (p.62). Diante do tribunal, as testemunhas são citadas. Daí a força do testemunho nos últimos anos (ver Annette Wieviorka, Shoshana Felman), a qual nos leva, por conseguinte, a rever “todas as noções herdadas de séculos de teoria poética e dos gêneros” (p. 63). Para o autor: “A tarefa da memória deve ser compartilhada tanto em termos na memória individual e coletiva como também pelo registro (acadêmico) da historiografia” (p.63).

REFERÊNCIA:

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: São Paulo, 2006, p. 59-88.